
Maria Alice, “As Primeiras Gravações 1929-1931”, constitui a segunda selecção de fados organizada no âmbito da colecção Arquivos do Fado, que se espera ser longa e próspera, como acredito que esteja a ser no espectro da fadistagem.
Maria Alice foi, em tempos, uma referência na projecção desse fado que registou nas gravações que agora nos são dadas a conhecer. Pela observação de diversas formas de arte ligadas à (por vezes terrível e injusta) condição de ser-se mulher, percebemos que estes fados servem (não só mas também) o propósito de desvelar as tensões desses percursos.
Fados absolutamente intensos, explorando retratos das mulheres que passaram pelas mais atormentadas torturas, por experiências amargurantes e humilhantes a nível psicológico, físico e emocional, deixando a grandeza do seu espírito surgir das cinzas por via dessa imolação. Na voz de Maria Alice tudo isso é Fado. Voz doce, melosa, que arrasta amargura pelas guitarras solenes. Voz que canta o desamor, a paixão não correspondida, a injustiça social, o sacrifício e a morte, um retrato dessa nossa Canção Nacional, essa “Voz de Portugal”, cantada com a dimensão merecida.
O texto introdutório, da autoria de Maria de São José Côrte-Real, define a importância deste trabalho de investigação e recuperação, assim como de conservação daquilo que afinal faz parte do nosso Património. Passo a citar: “A disponibilização do som como fonte primária documental assim beneficia não só o conhecimento em geral, como produz material didáctico de interesse educativo, fundamental para o desenvolvimento da investigação científica em domínios tais como a música tradicional, a literatura oral, a tecnologia de registo e restauro fonográficos, entre outros”. Expressando a minha total concordância, volto a frisar que esta colecção deverá ser entendida também como
documento, para além dos firmados créditos como objecto de fruição.
Da selecção de vinte fados, só o último, “A Azenha”, foi gravado em 1931, tendo sido gravados, os restantes, no ano de 1929. Embora, na maior parte dos fados, seja desconhecido quem acompanha à guitarra e à viola, excepto em “Esse Olhar dá-me Tristeza”, Maria de São José Côrte-Real declara existirem indicações de que Carlos da Maia (guitarra) e Abel Negrão (viola) serão os executantes dos dezanove primeiros fados. Foge a esta regra o fado “Tango da Morte”, apresentado na revista “O Ricocó” e acompanhado pela Orquestra de Tango, com letra de Armando Freire, expressando intenso dramatismo.
A apresentação de cada fado segue a mesma estrutura que já havia apresentado no texto Arquivos do Fado – Amália Secreta, ou seja, título, local, data, música, letra, editora, matriz, acompanhamento.
Maria Alice (1904-1997), nome artístico de Glória Mendes Leal de Carvalho nasceu na Figueira da Foz a 1-09-1904 e cantou, pela primeira vez, no retiro Ferro de Engomar, a convite da fadista Maria do Carmo, corria o ano de 1928. Revelou aos demais as qualidades doces e suaves da sua voz.
Com o apoio dos seus contemporâneos, onde se contavam a cantadeira Maria Emília Ferreira e aquele com quem viria a casar-se, o editor Valentim de Carvalho, Maria Alice gravou diversos discos e cantou nos mais variados contextos, nomeadamente no teatro de revista e em esperas de toiros. Seguiu-se, em 1934, uma oportunidade de viajar para o Brasil, onde permaneceu cinco meses e manifestou a consagração do seu talento além fronteiras.
O fado aqui apresentado, “Vida Triste”, é, na opinião deste Soldado, de uma beleza única e significante. Em jeito de homenagem à fadista e a esta colecção:
VIDA TRISTE
(Júlio de Sousa / J.F. Brito)
Vida triste de quem ama
E o coração não resiste
Ao grande amor que o inflama
Sinto o peito querer abrir-se
E o coração contrafeito
Como a tentar evadir-se
Sofrer, penar, levar ao calvário a cruz
Até que se apague a luz
Da derradeira ilusão
Se tudo acaba às mãos do tempo que corre
Porque será que não morre
Esta maldita paixão
Se é pecado olvidar
Eu pequei por ter amado
Alguém que não sabe amar
E um afago nem terei
Que possa servir de pago
A tanto amor que lhe dei
A nossa
Fadista já havia homenageado Maria Alice com o belíssimo fado, “Fado Menor”, que podem ouvir
aqui.
Fontes:
Sucena, E., Lisboa, o Fado e os Fadistas, Nova Vega e Autor, 2008
Biografia de Maria AliceNotícia da colecçãoTradisom