sexta-feira, 31 de julho de 2009

Da Paixão

A paixão é cá um Fado! Objecto dos mais variados arrebatamentos, é responsável por sintomas, físicos e psicológicos, como se de uma doença se tratasse, muitas e muitas vezes, transformando-se mesmo numa! É puro impulso perceptivo, que gera puro impulso cerebral, que gera puro impulso físico. É pura e instintiva, tão humana que pode conduzir ao seu perigoso oposto.
A paixão serve de palco aos mais contraditórios sentimentos. Felicidade e libertação com amargura e prisão. Pois é! A paixão não é só alegria e não termina apenas no amor e uma cabana. Paixão é destino, é fatum, é sofrer a bem sofrer! Mesmo quando é correspondida, é um aperto na garganta. Nada aconselhável mesmo. Acrescento, para quem estará a pensar "mas a paixão que sinto é linda e só tem coisas boas", que não é, vai perceber mais cedo ou mais tarde (se não for uma paixoneta, ou uma pancadinha) que tem de penar na mais profunda das solidões. Sim, porque a paixão não acontece só quando o apaixonado está ao lado, também acontece ao longe. É insuportável, traz saudade que arranha devagarinho e arranca pedacinhos de pele. Traz-nos o desespero e a inquietação. É absolutamente finalista! É um proto-apocalipse prestes a rebentar, quase no limite, quase sem haver ar para respirar mas havendo, aqui um bocadinho, ali outro. Cá vamos havendo, é assim na paixão. Egoísmo e solidão, sofrimento, luz e esperança. É assim esse Fado!
E quando a paixão não é correspondida?
É que, notemos, se quando é correspondida paira sempre o receio que não seja, imaginemos quando efectivamente não o é, quando essa obsessão conduz ao inquebrantável abandono? Algumas condições existenciais vêm-me à cabeça: desespero, angústia, solidão, humilhação, raiva, frustração, entre muitos outros, que ascendem nessa escadaria iniciática para o abismo. Há quem vá de escadote e depois, quando cai, olhe-se e pense-se "mete o escadote no c...!". Tal não é a paixão, a mais pura das ilusões.


Aqui vos deixo um fado que acho lindo, muito conhecido do repertório de Deolinda Maria, desta vez interpretado por Fernanda Maria. Há muita paixão que tem muito amor contido mas há muitos amores que vivem com muito pouca paixão. Complicado!


Fernanda Maria - GOSTO DE TI (Maria Lavínia, Alberto Simões Costa)




Irresistível este Desejo Louco, assim o é também na paixão, como brasão da entropia que conduz aos mais variados esgotamentos.
Ada de Castro canta com um acompanhamento de guitarras que é um estrondo, bem corrido e ritmado, que é para acabar em alegria.


Ada de Castro - DESEJO LOUCO
(J. M. Nóbrega, L. Fidalgo)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

MARIA TERESA DE NORONHA

Aqui apresenta-se a voz de Maria Teresa do Carmo de Noronha Guimarães Serôdio (1918-1993), cantando três fados, escolhidos a meu gosto, de entre um repertório riquíssimo, onde se destaca o fado Rosa Enjeitada, Fado das Horas, Alexandrino, Fado Anadia, entre outros. A voz de Maria Teresa de Noronha pode considerar-se inevitavelmente cativante, despertando paixões e reunindo consenso por parte de uma crítica que reconheceu o seu talento.
Voz soprano, cuja característica maior será o excelente alcance que atinge quando canta as notas agudas, perdendo a força quando a voz escoa pelas tonalidades mais graves, edificando uma escala dotada de intrínseco dramatismo. Esse dramatismo soube ela construir pela escolha do seu repertório (musical e lírico, constituído maioritariamente por poemas sobre amor/tristeza/saudade); pela modelação da sua voz, na utilização exímia dos pianinhos, que definem uma das suas principais qualidades enquanto fadista, assim como das ornamentações musicais, enquadradas e condizentes com a sua particular arte de expressar o fado.
Maria Teresa de Noronha não foi mulher do povo ou cantadeira das vielas de Alfama. Tal entende-se pela nobreza da sua voz, que parece contar a sua própria história. Mulher de linhagem aristocrática, foi filha de D. António Maria de Sales do Carmo de Noronha e de D. Maria Carlota Appleton de Noronha Cordeiro Feio. Casou com o 3º conde de Sabrosa, de sua graça José António Barbosa de Guimarães Serôdio, também ele rendido ao fado como guitarrista amador de profunda sensibilidade artística, e privou com os demais fadistas nos conceituados retiros de Lisboa.


Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, Maria Teresa de Noronha e José António Barbosa de Guimarães Serôdio n'O Faia.


Pessoa de fino trato, Maria Teresa de Noronha foi, segundo testemunham, uma mulher de grande coração, porém não muito calorosa. Visualize-se o oposto de Hermínia Silva, no que a ser calorosa diz respeito! Tem piada como o fado congrega os mais variados tipos sociais.
Maria Teresa de Noronha foi, e continua a ser, uma referência fortíssima (senão paradigmática) do chamado Fado Aristocrático, mesmo quando aristocrática era apenas ela, bem como os outros fadistas de nobre linhagem que abraçaram a Canção Nacional. O fado que cantou foi, pois, do povo e bem castiço, tanto que não era necessário, ou lógico, banhar-se em sangue azul, em termos estilísticos e musicais, para acontecer a uma bela voz que tão bem o soube cantar!


- Desengano, a cantar o amor e desamor, cheia de graciosidade.



DESENGANO
(Mário Pissarra /José Marques)

E adorei-te, acreditei
No bem que eu ambicionei
Dum amor sinceridade
As tuas promessas puras
E o calor das duas juras
Tinham a luz da verdade

Mas um dia te esqueceste
De tudo o que me disseste
Em confissões tão ardentes
Iludiste duas vidas
Com mil palavras fingidas
Que não sentiste nem sentes

Ao contemplar o passado
Como um golpe já fechado
Que ainda sinto doer
Vejo em teus falsos carinhos
Que as rosas têm espinhos
E também fazem sofrer.


- Na sua peculiar interpretação do Fado Hilário, destacam-se as potencialidades operáticas da sua voz.



FADO HILÁRIO
(Augusto Hilário)

Para cantar procurei
As minhas mágoas sem fim
Eram tantas que acabei
Por chorar com dó de mim

Passarinho, mesmo preso
És mais livre do que eu
Tu vives num cativeiro
E eu na dor que Deus me deu

Já não posso mais sofrer
Com tão amarga saudade
Dai-me a esmola de o esquecer
Minha mãe, por caridade


- De temática saudosista, o seguinte fado demonstra a expressividade e sensibilidade no domínio da expressão e da palavra.



FADO DA IDANHA
(Ricardo Borges de Sousa)

Quem me dera que voltasse
O doce tempo de além
Sentada junto à lareira
A ouvir cantar minha mãe

Ó tempo, tempo ditoso
Da vida eterno sorriso
Que terras em paraíso
Um mundo tão enganoso
Quanto à minha mãe, choroso
Lhe pôs um beijo na face
Lhe pedia que cantasse
Uma trova de bonança
E esse tempo de criança
Quem me dera que voltasse

Tempos que não voltam mais
Da nossa infância ridente
Em que eu vivia contente
Correndo atrás dos pardais
Das paredes dos casais
Que a nossa aldeia contém
Branquinhas como a cecem
Mudas como a gratidão
E recordam com paixão
O doce tempo de além


Fontes:
Sucena, E., Lisboa, o Fado e os Fadistas, Nova Vega e Autor, 2008
N'O Faia
Wiki PT
Wiki EN
Lisboa no Guiness
Fadistas Como Eu Sou

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Fados cantados por Hermínia Silva no filme Aldeia da Roupa Branca (1938)

«Em 1938, Chianca de Garcia decide realizar um filme genuinamente português, sonho que acalentava desde 1933. Aliás foi por pouco que o filme "Aldeia da Roupa Branca" não foi o primeiro filme da Tobis Portuguesa. Na altura, os responsáveis da Tobis optaram pelo filme de Cottinelli Telmo "A Canção de Lisboa". Agora em 1938, Chianca de Garcia recebe luz verde para o seu filme, e assim nasce "Aldeia da Roupa Branca". O filme é ambientado numa aldeia próxima de Lisboa, onde as mulheres locais lavavam a roupa dos habitantes da capital. O filme centra a sua história na rivalidade de duas dessas empresas, a do Tio Jacinto, papel magistralmente interpretado pelo actor Manuel dos Santos Carvalho, e a da viúva Quitéria, outro papel memorável que marca a estreia no cinema de uma grande actriz de teatro, Elvira Velez. No papel principal surge mais uma vez Beatriz Costa, onde tem neste filme outro desempenho memorável no papel de Gracinda. Curioso será que após a estreia deste filme já no início de 1939 no cinema Tivoli, tanto Chianca de Garcia como Beatriz Costa partem rumo ao Brasil, para tentar aí uma carreia artística.»
Os Anos de Ouro do Cinema Português
Duração aproximada: 82 mn. P/B Ano de produção: 1938




O papel de Maria da Luz (Hermínia Silva) vive muito através do universo dos outros personagens. Era por ela que o Chico andava desvairado (vulgo apaixonado) e o único motivo pelo qual ainda não havia deixado Lisboa (aparte dos carros, outra das suas paixões). Gracinda via em Maria da Luz uma ameaça e uma das causas para as inquietações do seu coração, devido aos sentimentos que desenvolvia por Chico. Ficaria ele com ela ou com a fadista? Trocaria ele uma vida simples, e um amor puro, por uma estabilidade duvidosa, rodeada pelos ambientes luxuriosos das cidades e retiros? Aquele fado, personalizado pela Maria da Luz, era um Fado da tentação. O Fado de Gracinda era outro, quase oposto, da luta, pobreza, candura, trabalho, vida simples e vivida em comunidade.






FADO DO RETIRO
(José Galhardo/Raul Ferrão)

É tão fresca a melancia
Como a boca da mulher;
Nas tardes de romaria
Rapazes é que é beber,
Chega a gente ao fim do dia
Sem dar p’lo amanhecer

É para esquecer
É para esquecer
Que assim beber
Tu me vês a vida inteira
Com este copo na mão
Que tem de sofrer
Mais vale beber até poder ter
O sangue de uma videira
Cá dentro do coração.

Ó tristeza vai-te embora
Que a vida passa a correr
Se não te alegras agora
Quando é que o hás-de fazer?
Bota o vinho a toda a hora
Canta, canta até poder

Se calhar haver zaragata
Com um freguês que tem mau vinho
Pr’a não estragar a frescata
É dizer-lhe com jeitinho
- Bebe lá mais meia lata,
Vá lá mais um pastelinho!






FADO DA FADISTA

(D.R.)

Nasci num dia de chuva,
Eu chorava, o céu chorava.
Minha mãe cantava o fado
A ver se me consolava.
Depois palrei,
Depois falei,
Depois cantei,
Como quem sente um segredo
Represado na garganta
Vivi, sofri
E no que vi,
Compreendi
Que a fadista de nascença
Só é mulher quando canta.

Num dia de sol ardente
Passou pela minha rua,
Olhámos um para o outro,
E eu senti que ia ser sua.
Ainda hesitei,
Mas o que eu sei
É que cantei
Como quem canta, sentindo
Que a própria alma é que canta
E a fulgurar
A suplicar
O seu olhar,
Tinha a mesma labareda
Que me queimava a garganta.

Numa noite fria e escura
Não voltou à nossa casa.
Pus os olhos no meu filho
Sentindo os olhos em brasa.
E só então,
Meu coração,
Nessa traição
Entendeu a dor profunda
Que há na alma de quem canta.
Se me deixou,
Me abandonou,
Fez-me o que sou...
- Agonia da saudade
Que enrouquece uma garganta.


O âmbito do poema do "Fado do Retiro", assim como a cena em que ele decorre, fez-me concluir que se trata efectivamente da sua designação no filme. Todavia, também pode ser associado aos nomes "Fado da Melancia" ou "É tão Fresca a Melancia". Os resultados das minhas pesquisas sobre o nome deste fado foram um tanto ambíguos e por isso deixo ao critério de quem possui mais/melhores fontes sobre o assunto. O mesmo acontece com o Fado do Fadista, no que concerne à autoria.

Fontes:
Cartaz da Partitura Musical
Marceneiro, V.D., Recordar Hermínia Silva, Edição de Autor, 2004
Agradecimentos
Ofélia Pereira
Vítor Marceneiro
Paulo Borges Almeida
Pela paciência demonstrada, obrigada.

sábado, 11 de julho de 2009

Fracasso...

Música Fado Menor com Versículo da autoria de Alfredo Marceneiro; Poesia de Linhares Barbosa, interpretada pela áurea voz de Berta Cardoso.



FADO FRACASSO
(Linhares Barbosa/Alfredo Marceneiro)

Quando há bocado me viste reparaste,
Que eu trazia um ar cansado, um ar doente,
Eu ando cansada e triste e arrependida
De ter andado a teu lado ultimamente.

Jurei aos pés do altar, piedosamente,
E jurei a uma Virgem de olhos doces,
Em sempre te acompanhar como uma sombra
Fosses tu ao fim do mundo, aonde fosses.

Mas um dia, um dia veio, um dia não,
Reparei que o teu amor era aparente
E fiquei abandonada, desprezada,
porque tu sem reparar seguiste em frente.

Eu cansei de ser sombra, de ser crente
E por isso tu me viste com cansaço,
Arrastando tristemente e arrependida
A falência do meu sonho, o meu fracasso.

Polémicas...
Este fado fez-me lembrar a polémica que li sobre o Versículo de Alfredo Marceneiro ter sido apropriado como criação original por Carlos do Carmo. Não me choca o silêncio que se gerou sobre esta matéria pois, nos dias que correm, questões de autoria são complicadas e chegam a ser muito ténues. Também o são as questões da originalidade, tendo em conta que ser-se original é raro, todos nós apropriamos e recriamos, uns mais do que outros, e umas vezes mais do que outras.
Dizer que o "Fado da Saudade" não tem relação directa com o Versículo do Marceneiro é um disparate, embora as respostas nesse sentido tenham sido ambíguas. No entanto acredito que Carlos do Carmo tenha levado a sua ideia avante porque criaram-se linhas de guitarra novas numa mesma matriz (fado menor) e um poema novo como base. As notas musicais para as linhas de voz mantêm-se as mesmas e a componente do versículo ficou, infelizmente, diluída no conjunto. Tratou-se de uma semi-criação.
O mundo do fado, como algo tão elástico que é, onde até é costume utilizar temas musicais para servir de suporte a diferentes poemas, não entendo qual seria o problema em usar um pouco de bom senso e ter reconhecido de início o tão proclamado autor. No fundo andamos todos aqui por amor ao mesmo, digo eu... aqui no Soldado é garantido.
No final, o que permanece é o mais importante. O Fado.


Fontes:
Lisboa no Guiness
Polémicas
fadocravo

domingo, 5 de julho de 2009

LISBOA ANTIGA



Um dos mais conhecidos fados sobre Lisboa – Lisboa Antiga – é um dos meus preferidos sobre a nossa linda cidade. Felizmente a história do fado bafeja-nos com poemas de qualidade inquestionável acerca da cidade de Lisboa, de uma rua ou de um bairro. O fado fala a estes sítios e é neles que, na maioria das vezes, acontece. Acontecer fado ao visitar um local não significa só estar a ouvir fado ou ir ouvir fado. Passear nestas ruas imortalizadas por estes poemas é Fado já de si. Apenas é necessário sentir.
Existe no You Tube um vídeo extraído de um programa da RTP, datado de 1981, em homenagem a Raul Portela. Considero este documento bastante importante porque tem uma introdução em que Beatriz Costa conta como surgiu a proposta para a criação deste fado-canção e como surgiu Hermínia Silva a cantá-lo.
A ideia inicial consistiria num fado destinado à voz de Hermínia. Todavia o Raul Portela decidiu que este fado merecia figurar no contexto de um baile oriental! Não sei como cedeu, mas quando finalmente se ouviu Hermínia Silva a interpretá-lo, Lisboa Antiga fez todo o sentido e tornou-se uma canção fundamental do nosso fado. Foi estreada no Teatro Variedades, em 1932, na revista Pirilau.
Esta maravilhosa canção foi também popularizada pela voz de Amália Rodrigues, tendo feito parte do repertório que levou à casa de espectáculos Olympia em Paris.






Hermínia Silva, Lisboa Antiga


Amália à L'Olympia


LISBOA ANTIGA
(Amadeu Augusto dos Santos/ José Maria Galhardo/ Raul Portela)

Lisboa, velha cidade
Cheia de encanto e beleza
Sempre formosa ao sorrir
No vestir sempre airosa
O branco véu da saudade
Cobre o teu rosto, linda princesa

Olhai, Senhor
Esta Lisboa de outras eras
Dos cruzados, das esperas
E das touradas reais
Das festas
Das seculares procissões
Dos populares pregões matinais
Que já não voltam mais

Lisboa de oiro e de prata
Outra mais linda não vejo
Eternamente a cantar
E a dançar de contente
O teu semblante se retrata
No azul cristalino do Tejo

Olhai, Senhor
Esta Lisboa de outras eras
Dos cruzados, das esperas
E das toiradas reais
Das festas
Das seculares procissões
Dos populares pregões matinais
Que já não voltam mais


Fontes:
Imagem, Bairro de Alfama
Marceneiro, V.D., Recordar Hermínia Silva , Edição de Autor, 2004
antoniomcmoreira