quarta-feira, 11 de agosto de 2010

FADO: Dos eruditos populares aos eruditos cultivados

Aqui deixo a transcrição da interessantíssima querela entre estes dois senhores, as suas perspectivas face ao trabalho de investigação, tendências, metodologias, etc. Como ainda não li os três principais livros, para aos quais os textos nos remetem, remeto-me eu a um respeitável silêncio. Não deixo de notar que temos aqui pano para mangas, calças, cuecas, peúgas, resumindo-se todavia (quase) tudo a uma questão (ou várias) de teoria da história e metodologia do trabalho de investigação. Mais do que o conteúdo visa-se a forma, não deixando este de sair prejudicado quando esta lhe falha. Deixo à vossa apreciação, ou seja, à recepção destas ideias, que também engrandecem a(s) obra(s).






Rui Vieira Nery: Fado Maior e Menor
20:06 Segunda feira, 2 de Ago de 2010

«No ano em que é apresentada à UNESCO a candidatura do Fado a Património Cultural Imaterial da Humanidade não é de espantar que a tradicional escassez da bibliografia sobre o género vá sendo contrariada pela publicação de um número cada vez mais significativo de novas obras sobre esta temática. Foram-se, de facto, sucedendo, ao longo da última década, lançamentos editoriais relevantes, desde os catálogos das sucessivas exposições do Museu do Fado, da responsabilidade de Sara Pereira, às séries de livros e CDs da Corda Seca/Tugaland (incluindo o meu próprio trabalho Para uma História do Fado, de 2004), às numerosas publicações associadas aos dez anos da morte de Amália Rodrigues (o catálogo da exposição Amália: Coração Independente no Centro Cultural de Belém, e a antologia discográfica Amália Nossa, entre outras) e mais recentemente ao marco monumental da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, coordenada por Salwa Castelo Branco, e ao ambicioso programa editorial previsto na própria candidatura.

Multiplicam-se, assim, os investigadores que nos campos da Musicologia Histórica, da Etnomusicologia, dos Estudos Culturais ou da Antropologia se vêm dedicando ao estudo das práticas e da história do Fado, legitimando de uma vez por todas a incorporação desta temática no foro universitário das Ciências Sociais e Humanas e cruzando na sua abordagem diversas competências científicas especializadas, que vão formando pouco a pouco uma rede mais apertada de saberes interdisciplinares. Muitos deles, significativamente, são jovens pesquisadores a prepararem mestrados e doutoramentos ou já em início de carreira (Rui Cidra, Pedro Félix, Ana Gonçalves, Kimberly Holton, Paulo Lima, Leonor Lousa, Sara Pereira, João Silva, António Tilly, e outros mais), constituindo uma massa crítica que augura o melhor futuro para este novo campo de estudos.

Este trabalho desenvolvido no foro académico tem sido, por outro lado, acompanhado de uma importante produção ensaística da responsabilidade de eruditos que emergem do próprio terreno do Fado, muitos deles demonstrando um enorme conhecimento vivencial direto das práticas do género, do seu repertório, das suas convenções performativas e do percurso biográfico dos seus protagonistas mais relevantes. São disso exemplos destacados os trabalhos pioneiros, recheados de dados novos de pesquisa original, de José Manuel Osório, em particular nas colecções Fados de A a Z (Corda Seca) e Os Fados da Alvorada (Movieplay) e o esforço constante de divulgação inteligente desenvolvido ao longo dos anos por José Pracana, ou até, apesar de alguns aspetos metodológicos mais frágeis, os levantamentos de informação sérios e muito úteis propostos por Vítor Duarte sobre a vida e obra do seu avô, Alfredo Marceneiro, ou por António Manuel de Moraes sobre as ligações históricas entre o Fado e a Tauromaquia. Um dos aspetos mais positivos da candidatura à UNESCO agora em curso é precisamente a preocupação de assegurar este cruzamento permanente de saberes e olhares complementares sobre o Fado, juntando ao rigor e à consistência das abordagens das várias disciplinas universitárias o contributo inestimável e cheio de sabedoria destes testemunhos do terreno. Parafraseando - com toda a distanciação ideológica, já se vê - o velho aforismo salazarista - todos não somos demais para o estudo e o conhecimento alargado do Fado.


UM GRANDE TESTEMUNHO

É neste último contexto que se enquadra o recente livro de Daniel Gouveia, Ao Fado Tudo se Canta?. O autor, com uma longa carreira na edição literária, teve simultaneamente nas últimas quatro décadas uma presença significativa no circuito fadista como intérprete, compositor, poeta e ensaísta. Conheceu, neste período, todos os grandes nomes do Fado, ouviu de uma ponta a outra o repertório do género, recolheu e registou toda a pequena história interna da comunidade fadista, acompanhou a abertura e o fecho de cada casa de Fado e a evolução do respetivo elenco, assistiu ou teve acesso indireto a acontecimentos históricos marcantes e a polémicas, amizades e desavenças (e até - o que não é irrelevante para a matéria em causa - a amores e desamores) e compilou com paixão um acervo vastíssimo de dados inéditos em publicações periódicas, programas, cartazes e folhetos. É precisamente este conhecimento alargado e amadurecido que agora nos oferece no seu livro.

Quem o conhece sabe que Daniel Gouveia é um conversador nato, cheio de histórias que se vão encadeando por associação livre, sempre com aquele brilho nos olhos de quem fala daquilo que ama, e a sua escrita reflete precisamente essa faceta de interlocutor entusiasmado que nos convida para uma tertúlia informal sobre o seu objeto de paixão. Ao Fado Tudo se Canta? é por isso mesmo uma espécie de grande testemunho, vivido por dentro, de um percurso pessoal pelo universo do Fado tal como este se foi configurando não só no tempo de vida adulta do autor como no das duas gerações anteriores com as quais conviveu. E essa postura de observador, que faz parte do objeto observado e assume sem rodeios a intersecção destes dois estatutos, permite-lhe adotar com frequência um tom normativo que traduz sem rodeios as convenções internas do circuito de que dá testemunho e de que ele próprio é agente direto. Um investigador académico, mesmo nestes tempos de triunfo ostensivo do subjetivismo pós-moderno, não poderia ter a ousadia de definir assim regras de boas práticas (ou, como o autor declara de forma inequívoca, de "bom gosto") para o género que está a descrever. Mas esse caráter interno ("émico", diriam os antropólogos) da sua perspetiva faz com que Gouveia tenha toda a legitimidade para o fazer, como um depoimento que vem de dentro do mainstream do género relativamente às regras do jogo que em sua opinião devem regê-lo.

Nas questões de natureza histórica mais remota, como a das origens do género, Gouveia é discreto e cuidadoso, procurando sintetizar com objetividade as várias leituras presentes na historiografia e no ensaísmo do Fado ao longo do século XX, definindo-as com inteligência e comentando-as com bom senso e por vezes com uma pitada de humor, que é uma das características que mais agradável tornam a leitura da obra. Nas matérias de incidência mais recente, em que naturalmente se sente mais seguro, raciocina com clareza e lucidez, mesmo abordando tópicos de algum melindre como o da fixação das autorias polémicas de alguns pilares do repertório corrente (veja-se, por todas, a sua discussão exemplar da autoria do Fado Menor com Versículo), e sem receio de assumir posições pessoais firmes nos debates de fundo em curso. Em resumo, Ao Fado Tudo se Canta? é claramente um dos grandes marcos da bibliografia recente sobre o Fado, e um exemplo perfeito do enorme mérito próprio insubstituível que pode ter o trabalho de um investigador amador - no duplo entendimento de alguém que está de fora do discurso científico académico mas sabe encontrar um registo epistemológico alternativo com normas próprias de rigor e de alguém que ama profundamente o seu tema de estudo.


AUSÊNCIA DE PERSPETIVA CRÍTICA

O mesmo não se pode dizer do volumoso trabalho de José Alberto Sardinha, A Origem do Fado (assim, perentoriamente, no singular), que não obedece nem aos requisitos científicos mínimos da produção académica em qualquer dos ramos das Ciências Sociais e Humanas que se debruçam sobre esta matéria, nem aos critérios de legitimidade própria que pode ter a abordagem "interna" dos eruditos do terreno, ficando numa terra de ninguém que não é, afinal de contas, nem uma coisa nem a outra e tende assim a acumular alguns dos piores defeitos de cada uma delas sem conseguir ter, em contrapartida, as virtudes de nenhuma.

José Alberto Sardinha é jurista de formação e profissão, mas consagra desde há longos anos os seus tempos livres à recolha etnográfica de músicas tradicionais um pouco por todo o País, tendo assim acumulado nas últimas três décadas algumas centenas de horas de registos, gravados quer por si próprio quer pelo extinto grupo de recolhas Almanaque, de cujo espólio é detentor legal. Não podem ser postas em causa a dedicação e a persistência admiráveis deste trabalho, que, no entanto, foi sempre marcado pela debilidade das suas bases teóricas, consistindo desde o primeiro momento numa etnografia empírica descontextualizada, onde os dados do terreno se acumulam, por assim dizer, no "estado puro", sem interpretação, sem leituras críticas, sem cruzamentos, sem hierarquias internas. E é assim que ao debruçar-se agora sobre o Fado o contributo de Sardinha consiste, essencialmente, numa enorme coleção de gravações de campo (algumas, diga-se de passagem, lindíssimas) efetuadas à escala nacional, do Minho ao Algarve e às Ilhas, ao longo do último quarto do século XX - pelo menos metade das quais, por sinal, não são sequer de fados mas representam antes uma espécie de pot pourri sortido de músicas tradicionais diversas, na maior parte dos casos exemplos do Romance, mas saltando também do Malhão ao Corridinho, da Chula à Rusga e por aí fora.

Este levantamento poderia ser, em si mesmo, um contributo muito útil, desde que lido numa perspetiva crítica e problematizante, ausente por completo da obra, procurando enquadrar as práticas assim documentadas no contexto mais geral da História da Cultura Popular portuguesa do século XX e em particular nos seus processos internos de mudança, entre as suas raízes históricas mais remotas e a construção gradual de uma modernidade a que o mundo rural de modo nenhum escapou imune. Mas Sardinha parte, pelo contrário, de uma conceção de Música Tradicional herdada do folclorismo romântico oitocentista, que vê nas tradições musicais não um conjunto de práticas dinâmicas em permanente transformação e interação (a "reinvenção da tradição" de que falava Hobsbawm), mas objetos imutáveis, aparentemente nascidos por geração espontânea e perpetuados depois ao longo dos séculos por simples transmissão mimética, geração após geração, século após século. Tendo assim reunido no quarto de século final do século XX um volumoso corpus de depoimentos que considera atestar a prática do Fado por largas dezenas de velhinhos de Norte a Sul do País, Sardinha automaticamente conclui daí que esse fenómeno contemporâneo generalizado se deve considerar, à partida, como uma evidência de uma prática contínua e imutável, suscetível de ser projetada retroativamente ao longo dos séculos e remontando, se possível, à própria fundação da nacionalidade ou pelo menos ao romanceiro medieval. O Fado seria deste modo - como de resto, para o autor, todos os demais géneros musicais tradicionais - um fenómeno supra-histórico, sem princípio, nem meio, nem fim, desprovido de realidade histórica concreta, pairando sobre o conjunto da Cultura Popular portuguesa como uma espécie de determinante genética inerte, indivisa e intemporal. Sardinha propõe que nesse ADN fadista ideal terão convergido - não se sabe se em algum momento determinado, numa espécie de big bang inicial, ou se de forma mais gradual ao longo dos séculos - as várias tradições musicais rurais de todo o País (o que poderá explicar a dispersão dos exemplos gravados em anexo), e propõe até um intermediário histórico preferencial para essa partilha supostamente multissecular, os cantores cegos itinerantes, que assegurariam nas suas digressões essa comunhão musical permanente à escala nacional. Esta última tese é, evidentemente, de um simplismo ingénuo, porque atribui a um grupo social restrito, sem uma identidade cultural específica e sem relevo quantitativo minimamente determinante, um protagonismo de mediação que nunca poderia ter assegurado por si só num processo de semelhante dimensão e de âmbito geográfico tão amplo. Mas sobretudo contraria toda a informação histórica documentada sobre as práticas musicais tradicionais no País, que regista a prática do Fado até finais do século XIX apenas na região da Grande Lisboa, no polo estudantil de Coimbra e nas disseminações esporádicas que a partir deste último se foram verificando na segunda metade do século, sobretudo em zonas urbanas da faixa litoral (veja-se, por todos, Ernesto Vieira, no seu Dicionário Musical, de 1890).


UM MODELO IMAGINÁRIO

Refira-se, de resto, que os exemplos efetivos de Fado que Sardinha, apesar da mistura de géneros já mencionada, recolhe na sua antologia de gravações são Corridos, Mourarias e Menores de uso corrente no repertório fadista do século XX, acrescidos, ironicamente, de vários fados escritos já nas décadas de 1930 a 50 por compositores bem identificados, que por simples desconhecimento do repertório fadista lisboeta o autor não soube reconhecer. Só para dar alguns exemplos: "A Rosinha Cantadeira" (recolhida em Vinhais, em 1996) é um dos grandes êxitos de Amália Rodrigues, a "Carmencita" de Pedro Rodrigues e Frederico de Brito; a "Talha do Fazendeiro" (Sertã, 1989) é o "Fado Latino" de Jaime Santos; a "Quadra do Amante da Mãe" (Guarda, 1990) é a "Marcha" de Manuel Maria Rodrigues; a "Cantiga do Saltimbanco" (Proença-a-Nova, 1989) é o "Fado Bailarico" de Alfredo Marceneiro; e até o "Romance de D. Melindro" (Monchique, 1981) é a primeira secção do "Fado Menor do Porto", de Joaquim José Cavalheiro Jr. - nada mais nada menos do que o celebérrimo "Não é desgraça ser pobre" de Amália. Sobre o testemunho supostamente multissecular do repertório assim recolhido estamos conversados.

Se Sardinha propõe este modelo imaginário de difusão histórica do Fado no conjunto do território continental português, em nome de uma conceção romântica implícita de Volksgeist nacional que não passa de um pressuposto ideológico oitocentista e que ignora a pluralidade e a diversidade dos contextos e dinâmicas culturais locais, faz questão de rejeitar a todo o custo, por outro lado, igualmente com base num mero preconceito ideológico, qualquer ligação à única manifestação do Fado antes de 1830 que se encontra inequivocamente descrita no espaço lusófono, a do Fado afro-brasileiro amplamente referido pelas fontes das primeiras décadas do século XIX. E para argumentar de forma mais eficaz, isola antes de mais cada uma dessas fontes do respetivo contexto, fragmentando a sua leitura de cada texto em observações pontuais irrelevantes que ofuscam a dimensão global de cada testemunho e a respetiva inserção num quadro de conjunto com as demais descrições congéneres. Ao mesmo tempo, lê de uma forma extremamente imprecisa toda a historiografia do Fado que refere e documenta essa ligação ao espaço afro-brasileiro, adulterando e misturando as posturas teóricas e as leituras, por vezes muito distintas entre si, dos vários autores assim agrupados. Atribui-lhes, por exemplo, a afirmação bizarra de que o Fado teria sido importado para o Brasil vindo do Congo, coisa que nenhum deles alguma vez afirmou, ou uma filiação direta do Fado no Lundum, ideia que a mim, por exemplo, nunca me passou pela cabeça e que o desafio a encontrar em qualquer passagem dos meus trabalhos sobre o assunto.

Em primeiro lugar, Sardinha ignora o contexto mais geral da profunda interpenetração que ao longo dos séculos XVII e XVIII se verifica em todos os aspetos da vida cultural, quer erudita quer popular, do espaço ibero-americano no seu todo. Desconhece que já nos vilancicos religiosos de autores seiscentistas portugueses e espanhóis que nunca saíram da Península encontramos ritmos, melodias e usos linguísticos de matriz inequivocamente africana (designados de forma explícita como "Negros" ou "Guinéus"), absorvida não tanto em primeira mão no próprio continente africano mas já no âmbito da interação cultural daquela com os modelos europeus ocorrida quer nas Metrópoles peninsulares quer na América Latina. Esquece a influência profunda dos poetas brasileiros ou radicados no Brasil, como Gonzaga, Cruz e Silva ou Caldas Barbosa, no conjunto da Literatura portuguesa setecentista, e omite a presença amplamente documentada em Lisboa de múltiplos géneros musicais de raiz afro-brasileira incontestada, desde meados do século XVIII, como a Fofa ou o próprio Lundum. E por tudo isso não percebe que neste contexto de práticas culturais partilhadas e entrecruzadas no contexto luso-afro-brasileiro essa chegada do Fado à Metrópole nas décadas de 1820 e 30 faz todo o sentido. Não compreender esta dinâmica transcultural de um relevo histórico fundamental não é, como Sardinha sugere, evitar um"multiculturalismo chique", é cair num monoculturalismo simplório.

Sardinha centra o essencial da sua contestação à ligação do Fado de Lisboa às práticas afro-brasileiras no isolamento artificial de cada uma das vertentes por mim apontadas como indicadores desta filiação (entre outras a carga sensual predominante, a estrutura melódica improvisatória assente em padrões harmónicos repetitivos e o uso predominante dos ritmos sincopados) e na tentativa de as rebater uma a uma, separadamente: músicas sensuais há muitas, improvisos melódicos sobre alternâncias simples de tónica e dominante também e ritmos sincopados ainda mais.

O argumento é, claro está, inteiramente falacioso em termos epistemológicos, porque não se podem discutir isoladamente as componentes de um modelo interpretativo como se fossem categorias autónomas e absolutas. É pela sua conjugação e pela sua presença simultânea no objeto em estudo que elas adquirem força demonstrativa coerente.

No que respeita à questão essencial do uso sistemático dos ritmos sincopados no repertório fadista, desde as suas primeiras fontes escritas, Sardinha começa, de resto, por fazer uma confusão primária em torno da própria noção de síncopa, misturando o conceito medieval e renascentista de síncopa como processo da notação mensural para permitir o registo de estruturas polimétricas na escrita polifónica com a prática posterior do retardo da acentuação métrica numa linha melódica, a contrariar as acentuações-padrão de uma pulsação rítmica regular. E depois ignora a evidência que a esse respeito apresentam as inúmeras partituras de Fado do século XIX e o próprio repertório oral posterior e subavalia apressadamente a constatação já feita nesse sentido, com o conhecimento ímpar das tradições musicais da cultura urbana lisboeta que lhe era próprio, por um Frederico de Freitas, por exemplo.


EXPANSÃO DA BIBLIOGRAFIA

O argumento de que seria impossível a uma dança converter-se numa canção é, claro está, igualmente improcedente, porque o Fado é desde as suas primeiras descrições documentadas identificado sempre como uma canção, dançada ou não, e porque até muito tarde no século XIX são inúmeras as referências ao "bater" do Fado lisboeta (vejam-se, mais uma vez por todas, as descrições e Camilo no Eusébio Macário e a célebre caricatura de Bordalo Pinheiro que representa Fontes Pereira de Melo e Mariano de Carvalho em pleno "Fado batido" numa taberna, de braços erguidos e ancas a gingar).

Num contexto florescente de expansão da bibliografia de referência sobre o género, Ao Fado tudo se Canta ? de Daniel Gouveia constitui um contributo precioso de um investigador exterior ao meio académico mas de mérito inequívoco - é aquilo a que metaforicamente poderíamos chamar um "fado maior". A Origem do Fado de José Alberto Sardinha, com a sua marginalidade em relação aos princípios metodológicos, teóricos e epistemológicos elementares da investigação contemporânea em Ciências Sociais e Humanas, a sua confusão permanente entre fontes primárias, bibliografia secundária e recolhas de campo, o caos do seu ziguezague constante entre contextos cronológicos e geográficos desconexos, e o seu desconhecimento evidente da produção científica de referência das últimas décadas sobre a História da Cultura portuguesa na transição do Antigo Regime para a Época Contemporânea, representa, pelo contrário, um grave retrocesso neste contexto. Trata-se, de facto, de um fado francamente menor.»






José Alberto Sardinha: Triste Fado
19:46 Terça feira, 10 de Ago de 2010

«Sob o título Fado maior e menor, Rui Vieira Nery fez publicar no JL não uma crítica, mas um virulento e descomposto ataque à minha pessoa, à minha idoneidade, à minha obra de investigação da música de tradição oral e particularmente ao meu último livro A Origem do Fado. Depois de elogiar todas as obras que se têm debruçado sobre o Fado, diz, em suma, que a minha é a única - a única - imprestável. Não admira: o meu livro é o primeiro a desmontar e reduzir a um cisco a sua mirabolante teoria da origem afro-brasileira do Fado. Tal como Espinoza, esforço-me por não rir nem chorar dos atos humanos, nem odiá-los, mas simplesmente compreendê-los. E a explicação do destempero está à vista: os bonzos da cultura dominante não aceitam desvios ao dogma, nem admitem estranhos ao couto, que pensem pela própria cabeça, critiquem e incomodem.

A mais interessante constatação a retirar do texto de Nery é que admite a improcedência, quando vistos isoladamente, dos três alicerces em que baseia a sua teoria da origem afro-brasileira do Fado (sensualidade da dança, melodias improvisatórias sobre estruturas harmónicas repetitivas e ritmos sincopados). Só que - adianta - esses três elementos devem ser perspetivados em conjunto e uma vez reunidos no mesmo fenómeno nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, passam a ser inteiramente corretos. Ou seja, segundo Nery, a Epistemologia consegue transformar em válidos três argumentos inválidos, desde que estes se conjuguem. Eu, que sou um simplório e um ingénuo, confesso não atingir tão altas esferas de raciocínio. Por este andar, as Ciências Sociais transmutar-se-ão em assunto de fé. Acredite, pois, quem quiser...

Em verdadeiro estado de desorientação pela esmagadora prova que carreei no meu livro em refutação da sua tese, Nery nada mais faz do que recorrer à violência verbal na proporção inversa da razão que lhe (não) assiste. E é assim que afirma que eu me situo fora dos requisitos mínimos da produção académica, que não tenho bases teóricas, que pratico "uma etnografia empírica descontextualizada, sem perspetivas críticas e problematizantes". Ou seja, que não pertenço ao grémio. Pois não - e ainda bem! Não teorizo sobre coisas que desconheço, nem cultivo o género da "temática da problemática da super-estrutura do registo epistemológico", nem faço enquadramentos balofos sobre a "criação de sinergias dinâmicas e progressivas", ou sobre "contextos sócio-culturais da modernidade no espaço e no tempo".

Assim sendo, só tenho de estar feliz por não integrar o rebanho do pensamento único, nem a confraria do elogio mútuo. Sou um investigador livre e independente em toda a aceção. Não pertenço a capelinhas, nem tenho de trilhar o caminho dos "mestres" ou repetir-lhes as asneiras com medo de deixar de ter os "requisitos científicos mínimos", aqui sinónimo de carreira académica.

Voltando ao texto em análise, verifica-se que Nery não leu, verdadeiramente não leu, o livro que pretendeu criticar. Quando muito, leu algumas passagens, o que porém lhe não chegou para compreender o cerne do que eu escrevi.

Só assim se explica que não tenha entendido a razão por que incluí nos discos exemplares de chula, malhão, corridinho, rusga e outras danças populares (trata-se de uma comparação, e não uma identidade, com o corrido, como está perfeitamente explicado ao longo do livro, particularmente no capítulo 9, onde analiso e descrevo cada uma das faixas dos discos). Daí também que afirme que eu defendo que a origem do Fado se situa na mistura de muitos géneros musicais rurais, um absurdo que nunca me passou pela cabeça e que o desafio a situar no meu livro (só por esta afirmação se vê que Nery não percebeu nada do que eu escrevi, nem qual é, na minha opinião, a origem do Fado). Daí ainda que se surpreenda pelo facto de os discos conterem essencialmente romances tradicionais (pois claro: é aí que eu situo a génese do Fado, como lá está sobejamente explicado). Daí, por fim, que exulte com a descoberta, entre esses cerca de 40 romances, de cinco melodias de fados registados (sem falar dos que eu próprio assinalei), o que significa que não leu o capítulo intitulado "Problemas de autoria". Também não leu o capítulo 2 do livro, onde rejeito a teoria romântica da Volksgeist, de que tão acintosamente me diz seguidor - v. também, a este respeito, a parte final do Capítulo 3, bem como os pontos seis e 16 do capítulo 13. Quando falamos do que não lemos, nem a Epistemologia nos salva.

Rui Vieira Nery remete-me para as notícias escritas de fado brasileiro antes de 1830. É surpreendente que o faça, pois contradiz-se a si próprio: em primeiro lugar, a p.50 do seu livro Para uma História do Fado, afirma que mesmo que surjam notícias portuguesas anteriores a essas, as outras provas (rectius os três referidos argumentos) são tão fortes que dificilmente os dados da questão poderão vir a ser alterados, dando assim mais importância a tais argumentos do que às ditas fontes; em segundo, porque num texto intitulado Entre mitos e enigmas, que publicou na revista do jornal Expresso, Nery explica assim a dificuldade do estudo do Fado: "(...) Como qualquer género de música tradicional, surgiu num contexto eminentemente popular e, por isso, constituiu-se, evoluiu e transmitiu-se, durante muito tempo quase exclusivamente por via oral, longe de qualquer registo escrito que nos permita hoje identificar e descrever com alguma precisão as sucessivas fases, pelo menos as mais remotas, da sua génese". Depois disto, ainda tem o arrojo de contraditar a minha teoria com as sacrossantas notícias escritas...

Dois pontos finais: o primeiro para dizer que em nenhum lado assaquei à tese brasileira a origem congolesa do Fado, depois transportado para o Brasil, nem atribuí a Nery a procedência do Fado diretamente do lundum (a sua posição está, aliás, desenvolvidamente exposta, com extensas citações da sua obra, o que confirma mais uma vez que não leu corretamente o que eu escrevi); a segunda para esclarecer que eu não sou o "detentor legal do espólio do Almanaque" por esta razão simples: esse grupo nunca teve nenhum espólio de gravações, na justa medida em que as recolhas eram por mim preparadas com viagens prévias, com contactos e escolha dos informantes e mais tarde gravadas num aparelho Nagra IV-S de minha propriedade, apenas nessa altura sendo acompanhado por alguns elementos do referido agrupamento. Tais recolhas são, por isso, naturalmente minha propriedade material e autoral, como está devidamente definido em documento legal. De resto, estranha-se esta referência sibilina, pois na verdade as expedições de recolha que realizei na época do Almanaque foram cinco ou seis, o que é ridículo se lembrarmos as largas centenas que já efetuei ao longo de 35 anos de pesquisas de campo por todo o país.

A grandiloquência do discurso de Nery esconde, muito simplesmente, a debilidade e a ligeireza da sua tese sobre as origens do Fado e continua a não explicar estas duas coisas elementares: como se justifica a transformação do fado-dança brasileiro (mesmo que cantado, como veio agora precisar) em fado-canção de Lisboa, verdadeiro milagre indecifrado, uma espécie de little bang em caldeirada cultural; e a origem da palavra "Fado" para designar o género poético-musical que nos ocupa, coisa que não explica nem jamais conseguirá explicar.

Verifica-se, em suma, que o conteúdo do meu livro está, no texto de Nery, frequentemente deturpado, outras vezes distorcido. O leitor minimamente atento chegará com facilidade a esta evidência e apreciará, sem peias nem preconceitos, o que aí deixei escrito, fruto das minhas investigações. Esta polémica não versa, por todo o exposto, fados maiores ou menores. Reflecte simplesmente o triste fado português de ter de aturar a pequenez e a pesporrência dos que se julgam donos do Saber em Portugal.

Anuncio desde já não vir a apresentar tréplica a uma eventual réplica de Rui Vieira Nery. As limitações do espaço jornalístico não permitem dissecar argumentos ponto por ponto, matéria que terá de ficar para outro texto. Além disso, onde me sobra a vontade, falece-me a paciência e o tempo, que me obriga a tratar de coisas mais importantes.»

domingo, 8 de agosto de 2010

Joaquim Silveirinha n'Os Fados da Alvorada



Nesta tarde de Domingo ("passado que passei", porque se calhar vai passar e este texto fica a marinar, como de costume), carregada pelas nuvens que não vertem, e que firmam uma melancolia pelo meu espírito e uma adorável enxaqueca que se instalou desde Sábado, decidi escrever mais um verbete, à laia de mezinha, porque mais uma paixão brotou. Desta vez foi por um senhor, Deus me valha, que já vou no segundo (ou será o quarto? - talvez 1/4 de tinto venha a calhar para resolver isto), Joaquim Silveirinha.
Tenho este dom das paixões impossíveis, no geral devido aos ditos cujos já terem falecido, porém, não é isso que desarma o meu coração para, platonicamente, encenar um casório ao ouvir esta voz, que me beija, na saúde e na doença, nas doenças de Domingo. É bom assim, à distância do tempo que nos separa, este namorico inteligente, porque não cansa e até enleva. Quase perfeito, não fosse a perfeição do amor noutros aspectos. O fado encena bem essa perfeição. Este senhor a cantar é um Amador apenas de nome. Tudo o resto faz vibrar desde a primeira nota.
Claro que a minha vizinha da frente já se antecipou há muito, tendo criado um vídeo com um fado de Joaquim Silveirinha, no seu blogue Fadocravo. Ei-lo, para os demais apreciarem novamente a raridade que é ouvir este fadista. Até fiquei a saber que ele cantou n'A Tipóia, e que esse retiro era de uma fadista que muito aprecio, Adelina Ramos (recentemente falecida, em 2008). Foi daquelas fadistas que tive de aprender a gostar, não agradou logo à primeira audição, mas tal foi-se modificando, ao ouvir o fado "Achei-te tanta diferença", interpretado no paradoxo entre o apuramento que surge da tonalidade popular e robusta da sua voz.
De Joaquim Silveirinha (1925-1975) sabe-se tão pouco como de outros fadistas, e no meio desta resignação, decorrente da falta de informação, retiro o que de mais sacro pode enriquecer as minhas audições. O que não se encontra documentado, imagino-o, e disponho essas figuras, outrora tão presentes, agora vultos quase esquecidos, que acompanho como tesouros sagrados, numa dimensão onde não perderam a sua aura.
Nem o Eduardo Sucena, no seu trabalho de referência "Lisboa, o Fado e os Fadistas", seleccionou uma sucinta apresentação biográfica de Silveirinha. No entanto, acredito que existam pessoas que saibam, que testemunhem e que tenham acesso a fontes que possam enriquecer o conhecimento que se tem (ou não) sobre este fadista. Ainda se comercializa uma edição em CD da colecção "Fados do Fado" a si dedicado na totalidade.
José Manuel Osório, na magnífica colecção composta por três volumes, Os Fados da Alvorada, dá a conhecer estes vultos, estas pérolas antigas perdidas no tempo, e agora recuperadas, ainda que apenas num fado (de cada um...), mas que apresentam uma base por onde se podem iniciar investigações e encetar novas paixões. Acompanhando estes volumes temos um livrinho com imagens, letras, informações biográficas e históricas que consolidam, de uma forma tão rara, o que muitos de nós (eu incluída) apenas ouvimos recorrendo ao escasso material sonoro.

Joaquim Amador Silveirinha vem assim registado a cantar "Sextilhas Soltas" no Fado Cravo de Marceneiro. Nascido na Madragoa, «estreou-se aos 18 anos, como amador, no Vendedores de Jornais Futebol Clube», mas cantou desde miúdo. Calhando, até seria costume na época uma pessoa saber um fadinho ou dois desde tenra idade. Na Madragoa, então, em plena década de 30, não devia trautear-se outra coisa :)
Obteve a sua carteira profissional no Concurso de Outono, organizado pelo jornal Canção do Sul, corria o ano de 1945. Foi a partir dessa altura que começou a cantar em diversos retiros como o Retiro dos Marialvas, Café Latino, Casablanca, sem nunca abandonar as suas ocupações profissionais, a principal como mecânico de construção naval. Joaquim Silveirinha uniu-se no fado a nomes como Natércia da Conceição (com a qual gravou um disco em conjunto), Fernando Farinha, Armandinho, Júlio Gomes, entre outros constituintes dessa irrecuperável nata fadista coeva.
Da entrevista para o jornal Guitarra de Portugal (15 ABR., 1947) podemos extrair que Silveirinha gostaria de cantar como os mestres João Maria dos Anjos, Marceneiro e Joaquim Campos. Joaquim Campos, claro está (um brinde de 1/4 de tinto para este senhor). Silveirinha era homem de fado castiço, ouvia cantar o moderno, mas aquele com o qual se identificava estava-lhe no sangue e naturalmente engastado na garganta. Confesso a minha ignorância nesta parte: em 1947 qual era o "fado moderno"? Diz que não tem letras de poetas consagrados no seu repertório: deve-o a Domingos Silva, José Almeida Rodrigues, Delfim Silva e António Augusto Ferreira. «Um artista não pode brilhar sem um bom repertório» mas já na altura os poetas recusavam-se a escrever por «falta de respeito pelos autores».
Admite gostar muito da imprensa de Fado, encontrando-se esta já sob a ameaça da precariedade, apresentando muitas dificuldades a nível financeiro. Não duvido que a dita sobrevivesse a correr por gosto. Hoje em dia, nem vê-la. De Canção Nacional já nem se fala; fala-se de Fado, mas pouco. Pode comparar-se esta realidade à das publicações dedicadas a determinados tipos de música mais em voga, que padecem de dificuldades similares.
Silveirinha alfacinha, amante de Fado, Touradas e Teatro de Revista, era do Benfica a 100% mas pendia-lhe a simpatia para o Sporting. Valha-nos isso:) Pensa que no Fado não há decadência, mas deveria haver «um pouco mais de brio». No fundo isto até nem mudou muito.

Em homenagem a este fadista, eis o fado que vos apresento da colecção Os Fados da Alvorada, Volume 2 (com escolha de repertório, textos e concepção de José Manuel Osório).



Joaquim Silveirinha canta Sextilhas Soltas (Delfim da Silva / Alfredo Rodrigo Duarte, o Marceneiro)
Ano de gravação 1959



A voz do fado é tão calma
Na sua terna expressão
De amor ciúme e desdita
Que põe delícias na alma
E deixa no coração
Uma tristeza infinita

Porta-voz de singeleza
O fado que eu canto e louvo
Sempre um amigo há-de ter
No coração da pobreza
Porque ninguém como o Povo
Sabe cantar e sofrer

O fado triste e amoroso
É saudade que se canta
É pranto que ganha voz
Por um condão misterioso
Sai a cantar da garganta
Mas chora dentro de nós

Versos ao Fado são flores
De um ramo que dia a dia
Tem sempre perfume novo
São rosas que os trovadores
Atiram com alegria
Para o regaço do Povo


Fontes:
http://fadoteca.blogspot.com/2010/02/joaquim-silveirinha.html
Aqui poderão ler o artigo completo do periódico
Guitarra de Portugal de Abril, 1947. É só bater à porta com jeitinho.
José Manuel Osório, "Joaquim Silveirinha - Sextilhas Soltas", in Os Fados da Alvorada, Volume 2, editado pela Movieplay Portuguesa SA, 2009.