domingo, 27 de setembro de 2009

Uma imagem de Berta Cardoso



Uma imagem icónica denuncia directamente uma representação estruturada pela majestade hierática. Será icónica para o que é domínio do simbólico, como hierática para símbolo de poder, de sagrado. Simbólica porque denuncia o contexto da personalidade nela inscrita e poderosa porque anuncia a sua influência por quem se deixa enlevar. Não só para quem deixa, como para quem não se liga; imagens assim não são catalisadoras de indiferença, muito pelo contrário. São cenários. Tanto para quem percebe do que ali se conta, naqueles traços, nas roupas, no penteado, esse retrato de época que choca pela presença, como para quem também conheceu a voz, a influência e a personalidade.
Imagens que são Fado, que são Símbolo, que são esse gozo espelhado no olhar, são imagens assim. Puras, estreitas, contidas, mas em estado de ebulição. Imagens de quem personifica e actua sobre a história: uma actriz fiel, uma mundana jocosa, uma fabricante de ilusões, uma dominadora do sensível e assoberbada pelo espírito (espirituosa!). Tantas foram, estas e outras, as qualificações latentes que vislumbrei neste irrecusável convite à interpretação.

Porque quando a fotografia deixa esse sentido do presente, atingindo um patamar do significante, aparente (ou Aparição), possui essa magia para deixar de ser retrato ou situação, para passar a
significar, a deslocar o estatuto. Se este fenómeno acontece com a larga maioria destes obturadores do quotidiano, esta foi a imagem que me trouxe outras viagens e outros sentidos. Para mim, uma imagem icónica do Fado, na figura de quem, sabemos nós, despertou paixões para durar uma vida inteira. Aparentemente retrato de silêncio, ensimesmado, quase autista, transformou-se nessa catarse do sentido e manutenção do sagrado que dura até aos dias de hoje, não para todos, infelizmente. Esta é culto e classe.

2 comentários:

  1. Excelente texto, Ti Maria Benta!

    Eu também não compreendo porquê a Berta Cardoso tem caído no esquecimento. Na minha opinião é uma das grandes cantadeiras de todos os tempos (não só no fado...) e não lhe dar o lugar que lhe corresponde na história do fado é falsear essa história. Julgo que já é hora de que alguma editora resolva publicar uma colectânea séria da produção discográfica da Berta: seria o primeiro passo perfeito para devolvê-la a esse lugar privilegiado que merece, não acham?

    Saudações fadistas desde os Estados Unidos,

    Antón.

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  2. Não querendo fugir ao tema e objectivo deste comentário, primeiro que tudo tenho de felicitá-la pela sua verborreia. Que escrita fantástica! O seu blog alia o sentido estético ao interesse que os seus "artigos" exalam sobre o fado. Peço desculpa por este aparte mas deparei-me com o seu blog no meio de imensos blogs sobre o fado e, não querendo menosprezar os demais, o seu tem uma escrita lúcida e criativa que arrebata, para não falar que faz justiça à língua mãe.
    Agora vamos ao que interessa...
    Portugal conhece a Amália e pronto. Qualquer outra fadista sem status icónico não teve projecção. Grande perda a maior parte dos jovens, e menos jovens, não saberem quem é uma Berta, uma Ada, até mesmo de uma Hermínia apenas ouviram falar. A Hermínia é para os demais leigos do fado um Bocage da poesia. Julgam que a maior qualidade de ambos era fazer rir.
    Ainda bem que há quem faça jus aos verdadeiros artistas da nossa história.

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