domingo, 29 de novembro de 2009

VER AMÁLIA Os Filmes de Amália Rodrigues, por Tiago Baptista




Fiquei algo surpreendida por ter deparado com aquilo a que chamo um livro de divulgação por excelência, a saber, um livro que, lá por ser de divulgação, não precisa necessariamente de ser banal, descritivo e adaptado ao consumo fast food (fast reading...) de hoje em dia. Pensar Amália no cinema foi o que Tiago Baptista nos trouxe, focando a atenção da sua escrita em diversos pontos que convidam à reflexão e ao pensamento sobre a arte da nossa Diva.

Deu a conhecer essas linguagens, apanágio da estrela/mulher, as quais subentendemos na ambiguidade entre representação e realidade, entre verdades que se escondem em actuações e representações que são próximas da vida construída para os olhos do público; a vida real, que se vislumbra nas entrelinhas, decorrente de interpretações do real encenado, do real vivido, do real fabricado.

Este livro não trata de uma filmografia exaustiva, com descrição de filmes e referências à petite histoire que plasmou a vida da fadista. Trata-se de uma análise simples, de leitura fluída, mas útil, gratificante até, que visa a estrutura em vez do simples acontecimento. Ver Amália a pensar Amália. Foi assim que li este pequeno livro, que pode ser só o início de tantas outras obras.

Para além do natural enfoque na interpretação da fadista, Tiago Baptista analisou a forma que a linguagem cinematográfica utilizou para expressar e transmitir o fado, a mulher, a fadista, a actriz, que se encontra por trás dessa personagem mítica que foi Amália . Criando algumas convenções na representação de Amália a cantar (i.e. o plano picado sobre o seu rosto) o cinema português criou aquilo que se tornou um clássico e que se transmitiu na filmografia vindoura.

Na figuração dos mitos existe uma certa circularidade, ou seja, a história mítica reflecte-se e actualiza-se constantemente como forma de legitimação e constante redefinição. A linguagem cinematográfica apostou na redefinição da história da cigana e fadista Severa, que se sacrificou por amor, como tão bem expressa o conhecido fado "Tia Macheta", que versa assim: "E desde essa noite [em que a Severa esperou, em vão, o Conde de Vimioso] é que existe o fado triste da Mouraria". O próprio Júlio Dantas, na peça "A Severa" bafejou com um toque poético aquela que, na realidade (diz-se), foi uma morte por tuberculose, na mais profunda solidão. Se quem conta um conto acrescenta um ponto, quem participa na (re)criação de um mito, poetiza.

Tiago Baptista explica como a imagem de Amália Rodrigues foi sendo criada à imagem da Severa, porém actualizando-se continuamente, legitimando essa ligação da mulher (Amália, actriz, fadista) ao amor trágico, ao fado, ao passado e à saudade. Recuperando os clichés do papel da mulher como amante e como fadista, como "presença", como estética, no fado, o cinema recuperou as realidades entretecendo-as na personalidade de Amália, ao mesmo tempo que ousava explicitar a emancipação definidora da mulher, por alturas dos anos 60, mesmo ela reconhecendo o que deseja para a sua vida e reclamando para a si a sua independência.

O amor será sacrificado no que respeita à desdita da história, seja por opção, obrigação ou sentimentos não correspondidos. O fado aqui encontrará a sua presença aglutinadora no conjunto de símbolos que ajudaram a construir a imagem popular e prismática da fadista Amália Rodrigues.

Capítulos que constituem a estrutura do ensaio:
Ver Amália ser Amália
Espontaneidade
Solenidade
Intemporalidade
Ambiguidade e Individualismo

Principais referências e análises aos filmes:
Capas Negras (Armando Miranda, 1947)
Fado, História de uma Cantadeira (Perdigão Queiroga, 1947)
Vendaval Maravilhoso (Leitão de Barros, 1949)
Os Amantes do Tejo (Henri Verneuil, 1954)
Sangue Toureiro (Augusto Fraga, 1958)
Fado Corrido (Jorge Brum do Canto, 1964)
As Ilhas Encantadas (Carlos Villardebó, 1965)

Edições Tinta da China, Lisboa 2009.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A Adega Machado encerrou



Bom dia! Más notícias para hoje, ou melhor, ontem.

Leia a notícia de 26 NOV. 2009, no Correio da Manhã.



A Adega Machado, espaço mítico situado no Bairro Alto, que contou com 72 anos de existência, encerrou no passado Domingo.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Grande Entrevista com Eunice Muñoz


Eunice Muñoz, 1948

No seguimento do post anterior, e como acredito que alguns leitores sejam admiradores do trabalho da famigerada actriz Eunice Muñoz, não hão-de querer deixar de saber que, às 21:00h do dia 19 deste mês, estará presente na Grande Entrevista, como especial convidada de Judite de Sousa.

Leia aqui a programação da RTP e deleite-se com um dos raros momentos em que vale a pena estar à frente da TV.


Errata: Como eu, de manhã, com a minha habitual dislexia, me enganei e indiquei que a entrevista era hoje, dia 18, perdoe-me quem leu e não viu o link. A coisa já está corrigida. Sempre podem, hoje, às 21:00h, ver uma reportagem sobre quem quer ter filhos à fartazana e quem quer, apenas, sopas e descanso.

Imagem extraída do blogue Dias que Voam.

Julieta Reis edita novo álbum




Julieta Reis edita novo álbum, ainda estou para saber de que editora. A chancela é coisa de importância. A sabê-lo na altura da aquisição.

Pode ler a notícia aqui, extraída do DN, 11 NOV. 2009.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Ano do Pensamento Mágico




Resolvi abrir uma excepção à temática deste blogue, para apresentar a peça recentemente estreada no Teatro Nacional D. Maria II, "O Ano do Pensamento Mágico", interpretada por Eunice Muñoz e encenada por Diogo Infante.

Joan Didion, americana, jornalista, nascida em 1934, escreveu o livro The Year of Magical Thinking, um compêndio das suas memórias, versando sobre a morte, a perda e todo o pesado processo que envolveu o lançamento dos seus entes mais queridos, definitivamente, para o mundo dos mortos.

Publicada em 2005, a obra de Joan Didion foi recriada em forma de monólogo, no palco da Broadway e do National Theatre de Londes.

O Palco

É uma travessia no deserto da existência que "vai acontecer-vos", refere Eunice, com certeza, não num tom ameaçador mas de aviso e de inevitabilidade. Um tom que dá o mote e continua a saborear-se nas palavras que só compreendem aqueles que vivenciaram a realidade da perda. Há uma ideia de dor, de perda, de morte, de choque; em contrapartida existe a realidade, o acontecimento, e o choque que transporta todas as suas inquietações. Esta é uma das muitas situações em que a ideia de é absolutamente incompreensível e até ilusória na sua interpretação.

Falar sobre a perda, mesmo a actuar, é fazer esse exorcismo muito pessoal. O exorcismo dos nossos mortos. Creio que existiu na assistência um misto entre entendimento e/ou identificação. Para Eunice Muñoz, foi uma peça ao seu jeito (como chegou a referir), para confrontar-se com as suas dores e com os inúmeros passados que deixaram recordações.

Para mim, mera espectadora, foi um golpe e tanto confrontar-me com dores idênticas às minhas, das quais reconheci de imediato as mesmas perturbações, se não as mesmas, muito idênticas, decerto. A ilusão, o pensamento mágico que nos faz ser mais associativos do que racionais: se eu fizer x... então acontece y. "Se eu não deitar fora os seus sapatos, ele [John] conseguirá regressar a casa". Mostra-se que se "lida com a situação"; faz-se o ritual, faz-se a coisa certa. Trabalha-se no vazio preenchendo-o com subterfúgios de intenção racional.

Lembro-me de uma deixa interessante, da qual aqui resolvo deixar mais uma paráfrase: "cuidado com as manhãs, são a pior altura para a auto-piedade". Manhãs? E as tardes? E o horror das noites? Mas compreendi. Foi expressa essa insustentabilidade perante o adverso. Estar calma, ter dinheiro para a viagem, essa viagem simbólica pelo limbo dos reinos. Estar no controlo da situação, em que nada do que se faz pela saúde de alguém chega, em que o "tudo" não chega. Após o tudo falta mais um pouco, pouco esse onde nos detemos e onde encontramos o abismo.

Cenário e Vida

Em palco estão uma mesa, o livro [da Joan Didion], um copo com água, lenços, uma poltrona, música para intercalar os momentos em que a escuridão nos cobre e em que o cenário, com um intrincado de formas acutilantes, se move e deixa a descoberto, após essa terrífica catarse, um final, que será o final para a vida. Atenção. Não da vida, mas para a vida. Porque a vida tem cá uma força (como um dia me disseram) que por mais amargura, medos, perdas, sofrimentos para a morte, relança sempre no sentido nesse desenlace. Para a vida.
"Amo-te mais do que apenas mais um dia". E um dia alguém dirá "talvez amasse".

Obrigada Eunice. Bravo!

Aqui vos deixo a reportagem que foi publicada na TimeOut Lisboa, 11-17 NOV. 2009, escrita por Bárbara Cruz:



Veja a autora com o seu marido e leia um excerto do livro.

Como Eunice se prepara para o palco, no Jornal I, 16 NOV. 2009, por Vanda Marques.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Pequenas Felicidades

É raro existirem fados assim. Fados positivos no que respeita ao amor. Lá que são positivos nas touradas, nas frescatas, na bebedeira, na rambóia, ou no que lhe quiserem chamar, disso não existem dúvidas. Mas fados de amor eterno, em que existem certezas na ligação entre duas almas, são caso de rara existência.

Quantas vezes não deparamos nós com os fadinhos chorados acerca da mulher abandonada, traída, humilhada e desrespeitada pelo marialva que anda a pisar em ramo verde, tendo ainda a lata de "gingar petulante, em ar de provocação" à frente da desgraçada? E depois, como "gosto de ti quando mentes", pensam elas que, ao recuperá-lo, tiveram uma grande vitória sobre a amante e assim acaba o fado! Claro que não... porque segue direitinho para a faixa seguinte onde "iludiste duas vidas, com mil palavras fingidas, que não sentiste nem sentes". E lá vai mais uma voltinha!

Só com o Chico e a Glória é que houve peixeirada da grossa que depois deu num lindo zarolho. Final feliz! Diz que na Travessa da Palha houve um cantar ao desafio entre as duas mulheres e a traída levou o marialva p'ra casa. Final feliz! E como "a mentir-me tens amor". Final feliz! "Mas eu sinto, meu amor, que escondes seja o que for, e fico preocupada". Pois claro, não se queixe!

Todavia acredito que, no meio tudo isto, deste desassossego, angústia, indignação, ainda exista espaço para pequenas felicidades, pequenos momentos que, mesmo que não durem uma eternidade, que não sejam um grande fado, são bons! Há sempre a hipótese de "alguns meses depois" voltar ao baile, "com outra blusa nova e out'xaile"... e ver o que acontece!

Por isso, enquanto o marialva foi aos toiros e sabe-se lá que mais, minha senhora, ouça este fado:

PEQUENAS FELICIDADES (Moniz Pereira)
Canta Lucília do Carmo



O nosso amor são pequenas felicidades
São sorrisos, são tristezas
Algumas leviandades
E também muitas certezas
Cresce sempre, nunca cansa
Tudo nele são verdades
A certeza não é esperança
Não tem lugar para maldades

O nosso amor são pequenas felicidades
São sorrisos, são tristezas
Algumas leviandades
E também muitas certezas
Aumenta todos os dias
Desde manhã ao sol-pôr
Aquece as noites mais frias
Enfim, é o nosso amor

O nosso amor são pequenas felicidades
São sorrisos, são tristezas
Algumas leviandades
E também muitas certezas
Um dia, tem de morrer
Muitos virão depois
Quando isto suceder
Já cá não estamos os dois


Bom fim-de-semana!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

ARQUIVOS DO FADO - ERCÍLIA COSTA




Por fim, sendo os últimos sempre os primeiros, no seguimento do que se tem exposto aqui e aqui, mais uma fadista, cujos registos eram inexistentes em lojas e grandes superfícies, pôde agora integrar esses catálogos e figurar entre os melhores (e piores) que actualmente se comercializam. Não que seja figura de destaque nos escaparates, ou que alguma vez o tenha sido (no contexto desta colecção), a par de Maria Alice... É apenas mais um daqueles paraísos perdidos, mesmo perdidos, no meio da mole indefinida de discos e de destaques que não merecem sequer honras de figuração.

Continuo a focar que muito me apraz ouvir estas gravações recuperadas dos 78rpm. Significa que, hoje em dia, procura valorizar-se aquelas que são agora autênticas peças de colecção, digitalizando-as e assim preservando-as do desgaste da audição. E servirá, também, para aplacar o desejo dos amantes do que outrora foi o fado mainstream e que agora é mais underground que os esgotos de Lisboa. Os amantes fadistas e não fadistas agradecerão, por certo, a oportunidade única de fruir novamente a voz de Ercília Costa, "que no Fado foi rainha", sem terem de ser coleccionadores destes fonogramas. Claro que nada substitui o som provindo da Vitrola, mas o registo destes 20 fados trazem uma aura tão doce e antiga que se deixa apreciar na permeabilidade dos sentidos. Penso que a era da alta fidelidade deixou brechas para se apreciar este género de gravações, além de terem ascendido à justa posição de registos de culto, aos quais os apreciadores de antiguidades não serão indiferentes. É o que a tecnologia permite: o registo da Antiguidade em CD, para mais, fazendo-a soar bem, possibilitando a transmissão aos vindouros que forem dotados de uma alma vintage.

O impecável e sucinto texto de Maria de São José Côrte-Real, presente no livrinho que acompanha este lançamento, explora os caminhos do repertório de Ercília Costa, que vão desde a auto-referencialidade do fado (que aqui resolvi apresentar em "Fado do Passado") passando pelo fado sobre as ruas de Alfama; sobre a cidade de Lisboa destaca-se o "Fado Lisboa", outrora cantado na Revista "O Canto da Cigarra"; uma Desgarrada, onde António Menano se apresenta a cantar à maneira do fado de Coimbra, interpretado também por Joaquim Campos, a par de Ercília Costa, mostrando duas maneiras diferentes de cantar o fado, enaltecendo assim a diversidade e o dramatismo. Pelos fados sobre ceguinhos, sobre o amor filial e sobre desgostos e amarguras motivados pelo Amor, Ercília Costa debitou as suas palavras sentidas.

O fado que escolhi para partilhar convosco não aconteceu apenas porque é passadista ou porque é determinado pela referência a si mesmo ou porque versa sobre três fadistas basilares (Severa, Cesária, Maria Vitória), mas especialmente porque tem um intróito instrumental que constitui a primeira secção do fado. Maria de São José Côrte-Real bem nota essa distinta característica performativa, apanágio do fado dos anos 30, um "modelo musical", como ela designa, caído em desuso provavelmente por constrangimentos relacionados com os tempos de gravação. Se caíu em desuso na altura, bem se vê que actualmente as canções também apresentam uma versão vulgarmente apelidada de radio edit, para passarem nas rádios, caso os originais excedam os parâmetros temporários que uma canção supostamente deverá ter para transmissão.

Nesta época de grandes convulsões históricas enformadas pelo dealbar das ditaduras na Europa e em Portugal, Ercília Costa, juntamente com Armandinho e outros fadistas, viajava e vestia o seu fado, que se encontrava num momento flamejante, afirmando-se e definindo-se em perfeita sincronia com outras formas de arte, sejam o cinema, o teatro de revista, ou as artes plásticas.

Ercília Costa As Primeiras Gravações 1929-1930

1. Fado da Alfama (Raul Ferrão / V. Bastos)
2. Fado do Passado (M. de Lencastre / V. Bastos)
3. O Meu Filho (Popular / Henrique Rego)
4. Fado Tango (Joaquim Campos / Fernando Telles)
5. Negros Traços (João David / Fernando Telles)
6. Desilusão (Campos - Proença / Henrique Rego)
7. Fado Corrido (Popular / Mário Leitão de Sá)
8. Um Desgosto (Alfredo dos Santos / Mário Fernandes)
9. Fado Lisboa (Raul Ferrão / Álvaro Leal)
10. A Minha Vida (Popular / sem informação no disco)
11. Fado Aida (Alfredo Duarte / João da Mata)
12. Fado Dois Tons (sem informação no disco / Alberto Costa Lima)
13. Fado Ercília (Armandinho / Júlio Guimarães)
14. Fado sem Pernas (Guilherme Coração / Manuel Maria)
15. A Desgarrada (Popular / Fernando Telles)
16. Fado da Mouraria (Popular / T.L.R.)
17. Meu Tormento (sem informação no disco)
18. Saudades que Matam (sem informação no disco)
19. O Filho Ceguinho (Ercília Costa / Amadeu do Vale)
20. Duas Glórias (Popular / João da Mata)


Fado do Passado (M. de Lencastre / V. Bastos)
Lisboa, 1929



Cantado por meretrizes
Chorando sua quimera
O fado criou raízes
Na garganta da Severa

O fado em várias orgias
Descreveu a sorte vária
Entre pranto e alegrias
Cantado pela Cesária

É filho de Portugal
E tem gravado na história
A fadista divinal
Que foi Maria Vitória


Leia uma biografia de Ercília Costa.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Adeus P.R. (1928-2009)


Teresa Tarouca "Saudade, Silêncio e Sombra" (Nuno Lorena / Pedro Rodrigues Santos)