quarta-feira, 4 de novembro de 2009

ARQUIVOS DO FADO - ERCÍLIA COSTA




Por fim, sendo os últimos sempre os primeiros, no seguimento do que se tem exposto aqui e aqui, mais uma fadista, cujos registos eram inexistentes em lojas e grandes superfícies, pôde agora integrar esses catálogos e figurar entre os melhores (e piores) que actualmente se comercializam. Não que seja figura de destaque nos escaparates, ou que alguma vez o tenha sido (no contexto desta colecção), a par de Maria Alice... É apenas mais um daqueles paraísos perdidos, mesmo perdidos, no meio da mole indefinida de discos e de destaques que não merecem sequer honras de figuração.

Continuo a focar que muito me apraz ouvir estas gravações recuperadas dos 78rpm. Significa que, hoje em dia, procura valorizar-se aquelas que são agora autênticas peças de colecção, digitalizando-as e assim preservando-as do desgaste da audição. E servirá, também, para aplacar o desejo dos amantes do que outrora foi o fado mainstream e que agora é mais underground que os esgotos de Lisboa. Os amantes fadistas e não fadistas agradecerão, por certo, a oportunidade única de fruir novamente a voz de Ercília Costa, "que no Fado foi rainha", sem terem de ser coleccionadores destes fonogramas. Claro que nada substitui o som provindo da Vitrola, mas o registo destes 20 fados trazem uma aura tão doce e antiga que se deixa apreciar na permeabilidade dos sentidos. Penso que a era da alta fidelidade deixou brechas para se apreciar este género de gravações, além de terem ascendido à justa posição de registos de culto, aos quais os apreciadores de antiguidades não serão indiferentes. É o que a tecnologia permite: o registo da Antiguidade em CD, para mais, fazendo-a soar bem, possibilitando a transmissão aos vindouros que forem dotados de uma alma vintage.

O impecável e sucinto texto de Maria de São José Côrte-Real, presente no livrinho que acompanha este lançamento, explora os caminhos do repertório de Ercília Costa, que vão desde a auto-referencialidade do fado (que aqui resolvi apresentar em "Fado do Passado") passando pelo fado sobre as ruas de Alfama; sobre a cidade de Lisboa destaca-se o "Fado Lisboa", outrora cantado na Revista "O Canto da Cigarra"; uma Desgarrada, onde António Menano se apresenta a cantar à maneira do fado de Coimbra, interpretado também por Joaquim Campos, a par de Ercília Costa, mostrando duas maneiras diferentes de cantar o fado, enaltecendo assim a diversidade e o dramatismo. Pelos fados sobre ceguinhos, sobre o amor filial e sobre desgostos e amarguras motivados pelo Amor, Ercília Costa debitou as suas palavras sentidas.

O fado que escolhi para partilhar convosco não aconteceu apenas porque é passadista ou porque é determinado pela referência a si mesmo ou porque versa sobre três fadistas basilares (Severa, Cesária, Maria Vitória), mas especialmente porque tem um intróito instrumental que constitui a primeira secção do fado. Maria de São José Côrte-Real bem nota essa distinta característica performativa, apanágio do fado dos anos 30, um "modelo musical", como ela designa, caído em desuso provavelmente por constrangimentos relacionados com os tempos de gravação. Se caíu em desuso na altura, bem se vê que actualmente as canções também apresentam uma versão vulgarmente apelidada de radio edit, para passarem nas rádios, caso os originais excedam os parâmetros temporários que uma canção supostamente deverá ter para transmissão.

Nesta época de grandes convulsões históricas enformadas pelo dealbar das ditaduras na Europa e em Portugal, Ercília Costa, juntamente com Armandinho e outros fadistas, viajava e vestia o seu fado, que se encontrava num momento flamejante, afirmando-se e definindo-se em perfeita sincronia com outras formas de arte, sejam o cinema, o teatro de revista, ou as artes plásticas.

Ercília Costa As Primeiras Gravações 1929-1930

1. Fado da Alfama (Raul Ferrão / V. Bastos)
2. Fado do Passado (M. de Lencastre / V. Bastos)
3. O Meu Filho (Popular / Henrique Rego)
4. Fado Tango (Joaquim Campos / Fernando Telles)
5. Negros Traços (João David / Fernando Telles)
6. Desilusão (Campos - Proença / Henrique Rego)
7. Fado Corrido (Popular / Mário Leitão de Sá)
8. Um Desgosto (Alfredo dos Santos / Mário Fernandes)
9. Fado Lisboa (Raul Ferrão / Álvaro Leal)
10. A Minha Vida (Popular / sem informação no disco)
11. Fado Aida (Alfredo Duarte / João da Mata)
12. Fado Dois Tons (sem informação no disco / Alberto Costa Lima)
13. Fado Ercília (Armandinho / Júlio Guimarães)
14. Fado sem Pernas (Guilherme Coração / Manuel Maria)
15. A Desgarrada (Popular / Fernando Telles)
16. Fado da Mouraria (Popular / T.L.R.)
17. Meu Tormento (sem informação no disco)
18. Saudades que Matam (sem informação no disco)
19. O Filho Ceguinho (Ercília Costa / Amadeu do Vale)
20. Duas Glórias (Popular / João da Mata)


Fado do Passado (M. de Lencastre / V. Bastos)
Lisboa, 1929



Cantado por meretrizes
Chorando sua quimera
O fado criou raízes
Na garganta da Severa

O fado em várias orgias
Descreveu a sorte vária
Entre pranto e alegrias
Cantado pela Cesária

É filho de Portugal
E tem gravado na história
A fadista divinal
Que foi Maria Vitória


Leia uma biografia de Ercília Costa.

6 comentários:

  1. Ah, fadista!
    Anda Pacheco! :)
    Não é preciso ser-se maduro (no sentido de muito amadurecido mesmo) para se apreciar e sentir o fado. A vivência ajuda mas a alma determina.
    E alma não lhe falta d. Benta.
    Parabéns e um beijinho.

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  2. Muito obrigada pelo caloroso comentário!
    Se há maturidade, não sei. Posso não a ter na vida mas faço questão em tê-la no meu trabalho.
    Se a Alma determina, então ainda mais o Amor. Quanto a esses sinto-me bem servida e com eles sirvo o Fado.
    Um beijo.

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  3. Seria injusto se não agradecesse todo o empenho da autora destas bem delineadas linhas sobre a Ercília. Confesso que são estes comentários que me irão ajudar a lutar contra a adversidade que impede que se possa assistir no nosso país a um plano série de tratamento do nosso património oral e tradicional. Não é só o fado, são os milhares de registos documentais de todo o tipo, que começaram a ser registados desde 1900, data da primeira gravação.
    Minha amiga a luta continua e se tudo correr bem o ano de 2010 será finalmente o que sempre esperei, porque há uma janelinha entreaberta que, se não houver tempestades ou temporais, jamais se fechará, pelo contrário, veremos as suas metades abrirem-se de par em par. E aí vamos conhecer definitivamente os grandes nomes ignorados da nossa tradição. Um beijo da maior amizade.

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  4. Obrigada, velhogramofone!
    É com algum optimismo, que não costuma ser meu apanágio, que encaro 2010 como um ano em que vão ocorrer excelentes edições. Talvez existam bons augúrios para o fado tradicional, quem sabe? Senão lá teremos todos de comprar leitores de 78rpm e ouvir o "the real deal", o que também não seria mal pensado, ou então apostar no "tape trading" como se fazia no meio underground dos anos 80 :)
    Boa sorte e bom trabalho!

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  5. Belo artigo sobre este fantástico CD da Ercília Costa.
    Curiosidade: a canção "Meu Tormento" é música de Júlio Proença, e letra de Mário Fernandes. Assim está no disco original de 78 rpm.

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