terça-feira, 13 de outubro de 2009

Vazio e Frio



Tema retirado do CD “Grande noite de fados : festa de homenagem a Alfredo Marceneiro”
Lisboa : EMI Valentim de Carvalho, 1998
Gravação ao vivo realizada no Teatro S. Luiz em Lisboa, a 25 de Maio de 1963



Lugar Vazio (Fernando Farinha / Alberto Correia)

É de noite que me lembro
De tudo o que eu tinha
Ao sentir-me abandonada
Deitada, sozinha
Lembro aquela felicidade
Que outrora foi minha

Chego a julgar-te a meu lado
Contigo, deitado,
Procuro na escuridão
Mas o teu lugar vazio
Está tão vazio e tão frio
Como esse teu coração

Olhando a tua moldura
Virada p’ra mim
Ambos sofremos o mesmo
Destino ruim
Falta nela o teu retrato
E faltas-me tu a mim


Cá do vazio percebo eu e não preciso de me concentrar sequer numa voltinha. Penso até que não existe concentração possível perante a voz desta senhora. Uma brincalhona de primeira com uma voz de qualidades tão únicas e intensas. Só podia ter sido uma vedeta absoluta e uma distinta fadista, esta Hermínia que trago na alma e muitas vezes na minha boca.
Poema dramático e romântico, não tivesse sido ele interpretado também por Tony de Matos (entre outros, como Eduarda Maria, Carlos Zel...); mas, deixem-me cá puxar a brasa à minha sardinha, a Hermínia fez um excelente trabalho no género. Cantar as amarguras do amor, com a contenção que lhe era única, firmou mais uma das suas absolutas qualidades, assim como quando interpretou o fado “Rosa Enjeitada”. Até parece que se sente (e não só parece!), por isso o Fado tem esta coisa da familiaridade. Quem sentiu e quem viveu (ou sente e vive) sabe reconhecer esses lugares vazios, no corpo e no coração.
A noite é mesmo diabólica. Há quem se mantenha sobejamente ocupado para, à noite, cair na cama de cansaço. A noite é macabra, como já me disseram. É na noite que se fincam as ausências na alma e no coração, até que tudo parece frio, gélido de morte, e já não bate. E não é de corações independentes que aqui se fala!
Eu conheço uma estrofe que reza e ilustra assim (adivinhem lá qual é... não vale ir ao Google):

Não passo bem a noite sem um fado
Não passo bem a noite sem beber
Não passo bem a noite abandonada
Não passo bem a noite sem te ver

O lugar vazio pode impor-se-nos, sem que assim o tenhamos escolhido. Pode fazer parte dessa nossa natureza que se abandona à solidão, ao invés de se envolver no conforto do calor humano. Onde é que acaba o medo?, essa insustentabilidade que surge pelo desespero de se estar só? Estar só, como vazio e frio, onde frio, não é o coração, mas o próprio fardo de estar a existir, de saber cuidar do dia.
Sem sentir e sem vida não existe essa fartura de lugares vazios, de buracos negros através dos quais respiramos. Contudo, não consigo deixar de vislumbrar com certo optimismo umas luzes intermitentes (intermitências de vida e não de morte) que nos abrem ao olhar uma nova paisagem. E não necessariamente boa.

Lugares vazios. Lugares comuns.



Ouça "Lugar Vazio" cantado por Tony de Matos

Fontes:
http://jorgesilva.bloguedemusica.com/8348/Lugar-vazio/
http://fonoteca.cm-lisboa.pt/cgi-bin/info3.pl?11190&CD&0
Autorias http://fonoteca.cm-lisboa.pt/cgi-bin/info3.pl?21434&CD&0

6 comentários:

  1. Há quem se sinta vazio, há quem viva o vazio, há quem escolha o vazio e há quem tenha de viver no vazio sem o ter escolhido.

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  2. Olhai a noite ... vêde a sombra dessas ruas
    Saudades que martirizam , que matam
    Olhai a noite ... refúgio das almas nuas
    Verdades que muitos nem sequer notam

    Não passo bem a noite sem um Fado
    Não passo bem a noite sem beber
    Não passo bem a noite abandonado
    Não passo bem a noite sem te ver

    Olhai a noite ... dessas longas madrugadas
    Fadistas , á procura d"um destino
    Olhai a noite ... ermo imenso desses nadas
    Fatalistas , vagueando em desatino

    Letra : António Torre da Guia
    Música : Álvaro Martins

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  3. Anónimo, verdade!
    Parabéns Fernando! É o justo vencedor.
    Agradeço a visita.

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  4. Excelente esta interpretação do "Lugar Vazio", uma das melhores letras que já escreveu o Farinha. Como sempre, a voz da Hermínia ressoa com saudade, se bem no começo não se resiste às piadas com os músicos. Confesso que, embora esta seja uma versão óptima, eu prefiro a versão muito mais "cançonetista" do Tony de Matos.

    E "Olhai a Noite" é um poema verdadeiramente maravilhoso, um desses clássicos da Berta que nunca vão morrer enquanto haja quem goste de fado. Eu tenho também uma versão do Filipe Duarte que é excelente.

    Obrigado por trazer à recordação dois fados dos mais autênticos!

    Um abraço desde os Estados Unidos,

    Antón García-Fernández.

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  5. Obrigada pela visita e pelo comentário, Antón.
    Realmente são dois fados/poemas lindíssimos e que foram objecto de interpretações únicas, umas mais que outras.
    Até à próxima.

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  6. Herminia tem uma grande voz, e um monte de boas músicas,
    Saudacoes de Belgrado.
    http://radojcicz.bloguedemusica.com/

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