terça-feira, 16 de junho de 2009

Ao fado que não está farto de ser cantado

Aos mais distraídos, queria alertar para a existência de um pequeno ensaio, não muito pequeno para o que costuma figurar em blogues, por isso encham-se de tempo para saborear cada palavra glosada por uma amante e conhecedora de fado convicta (Okawa Ryuko), que resolveu explanar o seu elogio, contra todos os preconceitos que parecem minar o fado como forma de arte inteligente, surpreendente e com uma sensibilidade emocional própria. Não esperem uma história do fado. Esperem (e leiam) antes um conjunto de características básicas do fado ilustradas com uma maravilhosa selecção de poemas, fotografias, bem como referências a outras obras escritas e a todo um espectro de fadistas, músicos, poetas.

Num texto inteligentemente estruturado contamos com uma introdução aos seus objectivos, expressando uma opinião escrita com um sentido de humor que nos envolve de imediato. Será o fado apenas piegas? Triste, choradinho e desgraçado? E porque é que parece assim? Quem se levanta para criticar de imediato as letras da música pop? Faz lembrar aquele estigma do “cantado em inglês soa sempre melhor”. O texto refere também a maturidade do fado, o que faz com que algumas almas pensem que é música para idosos, sem pensarem porque será que a maioria das pessoas com mais idade a entendem e choram com ela (calma, também há lugar para dar de beber à alegria).

Como sonoridade que permanentemente procura a qualidade da sua música e letras, é capaz de garantir essa mesma qualidade mesmo quando surge com poemas menos bem conseguidos (“Ai Mouraria”), com estruturas musicais mais pobres (se é que isso é possível), com letras a que normalmente não se reconhece qualidade, para quem se ocupa a comparar Linhares Barbosa com Luís de Camões. O fado canta sobre o amor, sobre a saudade, sobre a noite, sobre a alegria, sobre a esperança, sobre a história mítica, sobre as caravelas, sobre si próprio (e a auto referencialidade do fado é um dos pontos mais fortes do ensaio, na minha opinião) e sobre a falsa necessidade de renová-lo, deixá-lo lavadinho, polidinho, preparado para o consumo contemporâneo.

O fado é elástico mantendo ao mesmo tempo a sua integridade. Somos tão donos do fado como da língua portuguesa, embora às vezes apeteça agarrar e dizer que é nosso, dizer "é assim". Discorre-se ainda sobre o símbolo da guitarra para o povo português, bem como sobre o peso dos instrumentos de cordas na nossa cultura (que tema infindável para pesquisar...). Tem igualmente destaque a proveniência do fado, da nobreza e do povo, projectado na história de amor entre a prostituta Severa e o Conde de Vimioso. Li uma entrevista com Carlos do Carmo que indica que essas relações que existiam entre nobreza e povo foram rejeitadas pela burguesia. Cito a autora: “Nunca houve um Fado aristocrático, mas houve sempre aristocratas fadistas. Porque não perverteram o espírito do Fado, faziam antes parte dele.”

Mostra-nos, por conseguinte, como o fado registou a existência dos tristes e desgraçados da vida, sejam eles bêbados, prostitutas, ladrões, mendigos, pândegos da mais variada espécie (o fado negro das vielas...). O fado canta a vida que a todos pertence e por todos passa, deixando cicatrizes na memória, no corpo, na alma, na voz.

A autora reflecte ainda sobre o sentido sagrado do fado. Será vida e fado a mesma coisa? Ou será a expressão do fado decorrente da vida, porém destacando-se dela, legitimando-se como forma de arte autónoma? Reflecte-se ainda sobre a geografia do fado, que se centra nos bairros típicos de Lisboa e sobre qual o reflexo que o espaço tem no imaginário desta arte, o que nos leva a projectar a sua filosofia, a maturação dos seus ideais da sorte, do destino, da morte, da temporalidade...
Agora é convosco.
Dragon's Quest.

3 comentários:

  1. Óptimo texto acerca de um excelente artigo!...
    Parabéns!
    OP

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  2. Muito obrigada pela referência e por esta sua apresentação! Deu-se a muito trabalho! Vou só pedir-lhe que acrescente a palavra FAlSA na seguinte frase:"sobre a FALSA necessidade de renová-lo, deixá-lo lavadinho, polidinho, preparado para o consumo contemporâneo." Não fica melhor?
    Tenho também outro longo post no mesmo blog sobre Amália. Como pessoa de bom gosto, além da Hermínia, também gostará decerto da Amália.
    Okawa Ryuko

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  3. Muito obrigada pelo seu comentário! A falsa necessidade fica muito certa nessa frase e claro que vou acrescentá-la. Acabo sempre por considerar os meus textos um bocadinho "open source". Quanto à Amália, foi aquela com a qual comecei a ouvir fado. Durante algum tempo tive bastante dificuldade de apreciar outras vozes. A mesma pessoa que me apresentou a Amália incentivou-me a comprar um álbum da Hermínia. Eu, desconfiada, lá comprei, ouvi e imediatamente sucumbi a uma paixão que não parou de crescer (por vezes parece que as mais ávidas paixões são as que nascem da desconfiança). O seu artigo sobre a Amália vai ser uma das minhas próximas leituras, já tinha reparado nele, e o meu próximo texto vai ser sobre o último lançamento dos seus fados.

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