domingo, 23 de maio de 2010

Da Poesia no Fado

Ando por aqui a cogitar acerca da poesia ligada ao fado e também acerca da poesia que a ele se ligou. Foram várias leituras fortuitas que deram a pensar que poderá estar a surgir alguma actualização da poesia dita “popular”, ou seja, essas tais letras de fado que bafejaram com ares bem portugueses a boca dos nossos fadistas antigos.

Hão-de os doutos perdoar-me a análise simplista, porque actualmente não me toca a paciência, eu penso que muita desta querela sobre a fina poesia detém-se, em parte, com a referência ao real. A poesia de um Linhares Barbosa apresenta equivalentes ao real, ao quotidiano, àquilo que se vivencia. A poesia de Pedro Homem de Mello, ou de Alexandre O’Neill, oferece outro campo de possibilidades interpretativas, assim como os poemas de Camões.

Ter trazido para o fado poemas para os quais se escreveram canções (recorde-se a produção de Alain Oulman) não é nada transcendente, à primeira impressão. Porém, subtraiu aquele cunho castiço e popular aos poemas que andavam nas bocas do povo. O fado complicou-se sobremaneira quando começaram a existir muitas perdas dessa referência ao dia e passaram a existir referências ao conceito. As referências ao quotidiano não deixariam de pontuar algumas metamorfoses do sentido (nem que fosse de humor...). Quando o conceito aconteceu, o fado intelectualizou-se, tendo afastado uns e aproximando outros; e também mantendo alguns: aqueles que tiveram a clareza de espírito para conseguirem passear-se nesse limbo. Na música aconteceu o mesmo.

No entanto, assim como agora surge uma renovada importância dada ao Neo-Realismo (que até já tem museu próprio), ao que a pesada mão da História da Arte resolveu dar um desconto por esse malfadado movimento ter surgido instrumentalizado pelo comunismo e tão vinculado ao real (ao real, na representação); acredito que comece a surgir, também, futuramente, uma actualização das formas de poesia dita popular, e que as mentes se apercebam da validade artística e das soluções geniais adoptadas pelos poetas que escreveram para o fado. É que esses poemas podem também viver sem a música, assim como a poesia Camões, contudo, sem a mesma autonomia, que da música os acerca.

Não me acusa nenhum preconceito quando leio poemas carregados de histórias de faca e alguidar e de sentimentalismos amargurados, como sendo poesia série B. É evidente que existiram letras de fado de engenho duvidoso, que são apreciadas pela sua ingenuidade, e também surgiram poemas, que posteriormente integraram o fado, e que muitos ainda continuam a cantar. É que, no fado, além da validade artística, seja lá o que isso significa, “artisticidade”, ou mera qualidade (se é que “mera” e “qualidade” podem vir relacionadas), privilegia-se a autenticidade, que é invariavelmente sentida pelos demais. É difícil não reconhecer o carácter épico do poema “Lés a Lés” de Linhares Barbosa, que Berta Cardoso tão bem cantou, tendo-se estabelecido esse enriquecimento mútuo.

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Este texto, agora com algumas modificações, foi escrito no ano passado, e recordo-me que foi inspirado aqui. Trata-se, porventura, de um dos melhores ensaios sobre as particulares características da obra poética de João Linhares Barbosa. Aliás, todo o blogue Guitarras de Lisboa é um ensaio laudatório do Fado, incontornável para melómanos inquietos.

No seguimento desta exposição sobre poemas para fado, letras de fado, poemas musicados e outras semânticas que tais, deixo-vos um daqueles fadinhos fofinhos que vão muito bem com esta tarde nebulosa de Domingo. Quem descobrir qual a criadora deste fado ganha o prémio Soldadinho de Chumbo.

Para já, fiquemos com Maria Amélia Proença. Nascida em Lisboa em 1938, começou a cantar desde os 8 anos, quiçá antes. Integrou o elenco das principais casas de fado, entre elas, o Café Luso e a Adega Machado. Dona de uma força interior expelida pelo seu cantar, é uma das poucas fadistas que se mantém no fado tradicional, território onde afirma sentir-se melhor. Cantou letras de Carlos Conde, outro grande da nossa poesia popular. Ainda se mantêm no activo, encontrando-se entre as fadistas vivas mais antigas. Haja saúde.


Maria Amélia Proença canta Brincos Para Brincar (João Linhares Barbosa / Francisco Carvalhinho)




Quando eu era pequenina
P’ra me enfeitar as orelhas
Minha mãe punha-me às vezes
Quatro cerejas vermelhas

E toda tola lembro-me ainda
Que ia p’rá escola vaidosa e linda
Brincos vermelhos a dar que dar
Pedia espelhos p’ra me mirar

Diziam todas que bem lhe fica
Lembra nos modos menina rica
Via-os revia-os como riqueza
Depois comia-os à sobremesa

Um dia as mais raparigas
Filhas como eu da pobreza
Puseram-me nas orelhas
Dois brinquinhos de princesa

E toda triques faces coradas
Ia aos despiques nas desfolhadas
Vinham meus brincos de algum vergel
Não punham vincos na minha pele

Depois mais tarde vi-te e amei
Deste-me brincos de ouro de lei
Bendito sejas mas na verdade
Vejo cerejas sinto saudade


Letra: http://restaurante-fadomaior.blogspot.com/
Biografia: http://macua.blogs.com/o_fado_e_portugal/2006/10/maria_amlia_pro.html

domingo, 16 de maio de 2010

Fados à Conversa: Carminho no CCB




Estava eu a "partir naquela estrada" ("private joke", para quem esteve no CCB, a ver e ouvir Carminho) e a pensar o que me esperaria nesta solarenga tarde de Domingo. Estará muita gente?, pensei... Estes eventos dedicados ao fado são um irrecusável chamariz. Assim como Carminho a certa altura frisou, o fado tem um mercado bastante forte. Forte, digo eu, especialmente durante esta fase, que não se sabe muito bem quando começou, nem quando acabará. Carminho teve excelente "timing" ao finalmente editar o seu primeiro álbum, "Fado". Não negarei que não tivesse impacto similar, caso o lançamento ocorresse noutra altura, mas a moda ajuda e a própria quantidade de tempo que a fadista entregou a si própria, até aceitar que seria a altura ideal para gravar, trouxe-a até nós com um estímulo especial de verdade.

Carminho, outrora desconhecida fora da esfera fadista, é agora um potencial fenómeno de massas: portuguesas e à moda antiga (basta ver a faixa etária da assistência e tirar as devidas conclusões). Inegável fenómeno que reúne consenso em todos os meios (até nos meios não fadistas), pela qualidade excepcional da sua voz, entrega e expressividade. Posso dizer que saí da sala Luís de Freitas Branco impressionada e satisfeita. Particularmente, por saber que a rapariga tem aproximadamente a minha idade, é da minha geração, e isso enche-me de orgulho. É que o Fado de todos os tempos, não só deste, tem os bons, os maus e os assim assim.

É bom saber que existem vozes como as de Carminho e de Ricardo Ribeiro, para frisar mais um, que enriquecem esta arte já tão saturada mas que oferece ainda um campo extraordinário para estes filões de luz. Imagino-me a ouvi-los com prazer daqui a 30 anos, assim como ouço com prazer fadistas de há 30 anos atrás, ou mais, muito mais. Não vou ficar petrificada nestes discos que me acompanham todos os dias, nem vou permanecer apenas apreciadora de fadistas mortas ou com mais de 70 anos. É bom saber que há algum espaço nestes ouvidos birrentos (ou exigentes, dependendo da perspectiva) para explorar estas novas vozes, ainda que com conta, peso, medida e alguma desconfiança natural. Ainda não me habituei aos contrabaixos no fado, por exemplo. Desculpem, mas recuso.

Felizmente não foi o caso dos belíssimos músicos que acompanharam Carminho. Luís Guerreiro (guitarra portuguesa), André Ramos (viola de fado), Daniel Pinto (guitarra baixo), são exemplos de virtuosismo. O seu apreço por Carminho sente-se na forma como comunicam com ela, nesse fado que é de todos e que forma um conjunto natural, apesar das inúmeras horas de trabalho que estarão por trás de tão aprazível performance. Parabéns ao Luís Guerreiro pela qualidade de solos com que nos brindou no Fado Pechincha. Também eu fiquei quase sem respiração com tamanha quantidade de escalas, ornamentações, trinados e tudo o mais que o meu conhecimento musical não permite classificar.

Além dos músicos acompanhantes e da própria Carminho, Helder Moutinho (director artístico) deu o mote para o desenrolar da interessante conversa sobre o curto percurso da jovem fadista. Helder não conseguiu disfarçar a admiração sentida ao ouvi-la cantar. Ouvir Carminho contar a sua história, desde as suas influências, passando pelo percurso pelas casas de fado, pela presença constante do fado durante toda a sua vida (desde o ventre da sua mãe, Tereza Siqueira), foi cativante tanto pelo discurso juvenil e informal como pelos laivos de fino sentido de humor. "A miúda é gira...", ouvi alguém dizer.

Já perto do final deste encontro, Carminho desafia Helder Moutinho para cantar Marcha de Alfama. Ao meu lado, duas francesas não pescavam nada do que se estava a passar. Foram as palmas para a despedida e eu a perguntar, num francês macarrónico, se as ditas senhoras não teriam compreendido mesmo nada da conversa, ao que elas disseram: "Zero!" É que queriam que eu reproduzisse a história de Carminho, mas se fossem inglesas teriam tido melhor sorte e tudo o resto apenas dependeria da minha boa vontade.