Não posso afirmar que já não me encontro nessa fase, pois perspectivo alterações na minha vida que vão afectar, naturalmente, as audições dos "meus" fados ou, pelo menos, o tempo que a eles posso dedicar. Reservei então este bocadinho do final do dia, em que me sinto extremamente cansada, mas que terminei a ouvir uma doçura de voz, enquanto viajava de carro para casa. Foi assim como que uma infusão de energia extra que passou por mim. Não transformou propriamente os meus peitos em anseios de fogo (eu estava a conduzir, não é?) mas a metáfora deu para expressar aquilo que podemos chamar o poder transformativo da música, cá no nosso interior. E uma destas é que eu não estava à espera, talvez porque tenha reservado menos tempo aos sonhos do que de costume.
Deixo-vos então, para vosso deleite, a voz que emana delícias de Maria do Carmo Torres, com as devidas referências para as mentes mais analíticas. A fonte da qual retirei este tema foi a edição, em formato CD, Arquivos do Fado, Vol. 1, "Fado de Lisboa (1928-1936)", Tradisom, 1994. Desconhece-se que músicos a acompanharam a fadista nesta gravação de 1936. Letra? Música? Não encontrei. Caso alguém possa ajudar, terei todo o prazer em actualizar os dados.
Maria do Carmo Torres canta O Sonho (Lisboa, 1936)
Passo a transcrever a letra:
Na minha cama só estava deitada
Mas sem poder dormir pus-me a sonhar
Eu sonho muitas vezes acordada
E o que sonhei então vou-vos contar
Era uma tarde linda, vinham toiros
Correndo estrada fora para a praça
Onde os toureiros vão procurar loiros
Entusiasmando ao rubro a populaça
Eu andava pra'li entontecida
P'lo sol p'la cor p'la algazarra
De repente porém fui atraída
P'lo doce trinar d'uma guitarra
Era o Fado mas o Fado rigoroso
Cantava-o a Severa com preceito
E a guitarra nas mãos do Vimioso
Punha anseios de fogo no meu peito
Senti-me então fadista como era
Arrascou(?) a cigana e quis cantar
Cantei ao desafio com a Severa
Mas isto, meus senhores, foi a sonhar